VIDA EXIGENTE E DESIGUAL

Há anos, dedico parte do meu tempo ocioso, o que não é pouco, à minha modesta produção literária. Escrever me satisfaz. Sempre foi assim. Nesse período, produzi dois pequenos romances, cinco narrativas de viagens, alguns contos e um número de crônicas que já ultrapassou três centenas. As crônicas são de variada temática e versam sob o cotidiano imediato, assuntos políticos e econômicos, prosas ficcionais e relatos temporais.

Espero continuar a escrever, a despeito da idade avançada em dias, já reivindicada pelos anos que avançam celeremente. Os oitenta janeiros do meu genetlíaco estão bem próximos. Falta menos de três para eu ser considerado um octogenário.

Continuarei a importunar o leitor com meus textos. Serei, por assim dizer, a pedra no sapato a incomodá-lo até o limite de sua paciência.

Depois desse vago palavreado, eis o que reservei para a leitura de hoje: uma croniqueta inspirada nos acontecimentos vividos por mim nos tempos labutados em meu escritório, situado em edifício da zona central de Brasília. Vejamos, portanto:

Certo restaurante localizado naquele edifício era o espelho de outros estabelecimentos do gênero, ali instalados. Seus cozinheiros jamais tiveram relações de convivência com carnes de primeira. Do boi, preparavam apenas as costelas e pequenos bifes, duros e entranhados de nervos; da galinha, as asas, pés e, raramente, as coxas; os peixes, adquiridos de pequenos supermercados e de pescadores do poluído Lago Paranoá, eram preparados ao molho de poucos ingredientes ou fritados em óleo reprocessado repetidas vezes. Um peroá, peixe oriundo do litoral do Espírito Santo, quando excepcionalmente chegava às panelas daquele restaurante era uma festa, comemorada com o mesmo entusiasmo do governo para divulgar as realizações do Programa Fome Zero. No tocante aos temperos, usava-se apenas sal e pimenta do reino, destinados a minorar a insipidez dos alimentos.

Seria injustiça, todavia, dizer que aquele restaurante não oferecia outras “iguarias” em seu cardápio, estampado em uma lousa verde, com esporádica alteração ao longo do tempo, a não ser quanto aos preços, reajustados com desavisada frequência.

Para viabilizar a oferta de tais “iguarias”, o proprietário permitia que Chaguinha, misto de corretor de imóveis e de cozinheiro amador, preparasse alguns pratos para satisfazer a clientela, bastante enjoada da mesmice gastronômica a que se submetia.

Chaguinha elaborava especialmente os tira-gostos. Às vezes, preparava bifes de fígado bovino (sem cebola, para baratear o preço) e carne de sol, esta, produzida nas dependências do próprio estabelecimento e exposta à secagem sobre os freezeres, nos quais escorriam salmouras vermelhas e gordurosas.

Raramente, Chaguinha servia dobradinha, prato que aprendera a elaborar em visita à Fortaleza. Ele é goiano e jamais vira o mar, exceto em fotografias. Na Praia do Futuro, assustou-se com a imensidão do oceano e com a intrepidez das ondas gigantes.

O versátil Chaguinha deixou de exercer a atividade de cozinheiro naquele restaurante, depois de o proprietário negar-lhe a venda de bebidas, fiado. A dívida crescia na mesma proporção de outras tantas patrocinadas por inadimplentes fregueses. Baiano, Henrique, Alexandre e outros contumazes velhacos quase levaram o dono daquele empreendimento à falência.

O estabelecimento a que me referi ainda existe. Pertence ao mesmo proprietário, que superou as adversidades, o calote das compras fiadas e as reclamações dos clientes. Esse senhor é um homem de bem, vitimado pela própria ingenuidade, pelo governo que o explorou com elevados impostos, e pela vida que lhe tem sido exigente e desigual.