O que aprendi com uma travesti, uma drag queem, uma puta e uma prostituta

A conversa, sem pretensão de uma discussão robusta, se dava à beira mar, em Picinguaba. Minha amiga dizia que achava que estava demais, toda novela agora tinha personagem que remetia à homossexualidade. Oi? Não entendi. As novelas, a TV, o cinema, sempre tiveram e têm suas produções majoritariamente calcadas em personagens heterossexuais, seja na ficção ou na não-ficção, e nunca ouvi alguém que dissesse que isso estaria demais. É que as personagens de hoje se distanciam das saudosas e insubstituíveis Rogéria e Elke Maravilha, sem querer desmerecê-las de jeito algum, pois foram importantíssimas na cultura brasileira. (Obviamente que os intelectuais pudicos me crucificarão por associar tais figuras à cultura brasileira).

Rogéria, que foi uma mulher linda, utilizava-se de um slogan no mínimo inusitado: travesti da família brasileira. Nos anos 80, quando ela aparecia na TV, pai, mãe, avós, tios corriam para a sala a cuidar de explicar às crianças: é artista. Assim eram explicadas a homossexualidade e a diferença de gênero aos pimpolhos da minha geração. Quando eu estava entrando na adolescência, antes de sonhar com o príncipe que me seria reservado, sonhava em ser artista. Porque entendi que era a única forma de poder expressar o que eu era, libertando-me dos padrões esperados dos meninos machos.

Elke Maravilha era maravilhosa, poucas vezes um nome consubstancia tão bem a personalidade de quem o carrega. Suas vestimentas e comportamento desviantes, muito próximos das drag queens, evidenciavam que o gênero feminino era mais que exibir discretos tailleur e colar de pérolas, falar em tom moderado, rir quase nunca, aprender a fazer pudim de leite moça nos fins de semana para o marido. Os militares não a perdoariam, prenderam-na por seis dias, certa vez. Por desacato. E cassaram sua cidadania brasileira. Merecia um capítulo à parte no âmbito dos estudos brasileiros da teoria queer.

Por que as diversidades sexuais e de gênero incomodam tanto, na TV e na vida real? Esta semana participei de um seminário que discutia questões raciais, diversidade e inclusão de pessoas com deficiência na rede federal de educação. Uma participante relatou que um professor, certa vez, a procurou e disse que não admitia que um casal de dois garotos se beijasse à porta do seu templo sagrado, quer dizer da sua sala de aula. Mas nunca se incomodou com os casais formados por garoto e garota que se beijassem no mesmo lugar. Ou em qualquer outro. Uma professora, relatou esta mesma participante do evento, categorizou que não daria aula para um aluno com deficiência auditiva. Oi? (Não é propaganda da operadora, gente, aliás uma das piores em qualidade de serviços de telefonia). Professora? O diferente nos faz saltar aos olhos o que de fato sentimos mas não ousamos dizer, em tempos que, para uns, é chic dizer que não tem preconceito: mostrar de vez em quando, tudo bem, aplaca nossa ânsia de nos mostrarmos pessoas legais, mas mostrar sempre, é demais. Afinal, o lugar de travestis, homossexuais, lésbicas e outras aberrações é no anonimato, porque daqui a pouco vão querer dizer que são normais.

Expliquei a minha amiga que o seu comentário era preconceituoso, e expliquei-lhe pelas vias da análise de discurso. Não é uma pessoa má, minha amiga, e de fato se esforça para ser uma pessoa do bem nesses assuntos. Ultimamente tenho conversado muito com ela a respeito das travestis, desmistificando muitas concepções. Mas isso fica para uma outra escrita.

Aprendi muito vendo pelas décadas de 80 e 90 artistas como Rogéria e Elke, além de outras como Dercy Gonçalves, uma puta, diziam, e Elza Soares, que disse querer ser prostituta se não fosse cantora e, felizmente, está ainda entre nós. Quanto às personagens das novelas, uns muito bem escritos, outros nem tanto, é importantíssimo que eles povoem a cultura brasileira através da teledramaturgia. A telenovela, agradem ou não aos intelectuais e acadêmicos mais arraigados e inconformados com o distanciamento que nossa cultura hoje tem da cultura do Velho Mundo, faz parte da cultura brasileira sim. Trata-se de um dos maiores, senão o maior, produto cultural de exportação do Brasil. E não importa como estes personagens são mostrados, se são gays afeminados ou não, se são personagens caricaturais ou não. Elke sempre foi uma caricatura bem feita de si mesma e ninguém processou judicialmente as emissoras de TV por onde ela passava. Como ela mesma dizia, “Crianças, conviver é o grande barato da vida, aproveitem e convivam”. E conviver implica, necessariamente, estar entre as diversidades. Sob pena de se estar vivendo uma farsa.

A propósito, não virei artista. Tampouco o príncipe chegou. Ainda. E Elke não se considerava mulher, dizia. E apanhou na rua por conta da sua forma de se vestir. Contava ter feito três abortos. Casou-se oito vezes, mas transou muitas sem casar. E nunca, nunca mais quis reaver a cidadania brasileira que lhe fora subtraída, construiu uma outra, bem mais legítima. Fez bem, eu não quereria também, embora eu tenha dúvidas de que tenha de fato uma cidadania brasileira, apesar de ter nascido no Brasil, porque a minha não é a mesma cidadania dos heterossexuais. E isso, me ensinaram uma travesti, uma drag queem, uma puta e uma prostituta que não se prostitui.

Alice Zanella
Enviado por Alice Zanella em 26/11/2017
Reeditado em 26/11/2017
Código do texto: T6182654
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