Sobre aborto e adoçante

Há duas semanas só tomo café com adoçante. Nesta manhã, em que muitas montanhas de minas amanheceram brancas de uma garoa intermitente, a privação do açúcar me pareceu menos incômoda, senti meu corpo mais leve, será que perdi alguns gramas? Pego-me a pensar sobre o meu corpo. E o que eu posso e o que eu não posso fazer com ele.

Ao longo da experiência como uma mulher transgênero (talvez alguns vão discordar de mim por não reconhecerem a experiência crossdresser como uma "categoria" trans), quase sempre os homens perguntam por que não faço o tratamento de transexualização. Muitas podem ser as intenções por trás desse tipo de pergunta, motivos os mais variados, a maioria encobrindo o viés do desejo sexual ou algo do tipo. Tenho uma amiga, há algum tempo não a vejo, que sempre teve o desejo da transexualização. Da última vez que nos vimos, ela estava no processo, passando por terapeutas, psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas. E com a cirurgia marcada. Perguntei a ela por que queria fazer a cirurgia de mudança de sexo biológico. Meu marido quer muito. Não seria esse um motivo para mim, mas para ela... Como escreveu Caetano, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. E por conseguinte deve saber também a dor por não ser o que não é. Não obstante a isso, o corpo de cada mulher só pertence a ela.

Contemporaneamente, o corpo está carregado de sentidos conotativos. Na publicidade, por exemplo. Dito isso, não há como não lembrar da campanha publicitária da marca de lingerie Duloren (uma das marcas que eu mais gosto), na década de 90: foram várias peças publicitárias nas quais o corpo feminino aparecia liberto das normas em ralação ao corpo. Mas não é só na publicidade que se podem observar as conotações em torno do corpo, em filmes, programas de TV, na moda, na medicina, na política. Como bem assinala José Carlos Rodrigues, autor de "Tabu do Corpo", um clássico da literatura antropológica, o corpo "cumpre uma função ideológica".

Por isso, recebo estarrecida a notícia de que, na Câmara, nesta semana, uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) foi aprovada numa comissão especial, através de manobras de deputados evangélicos, criminalizando o aborto também em casos de gravidez resultante de estupro, de comprovação de fetos anencéfalos e de gravidez que põe em risco a vida da gestante. Até agora não estou acreditando nisso. Mas é a lamentável verdade, aprovaram. O texto seguirá para aprovação (ou não) em plenário. Detalhe: a votação foi feita por 19 parlamentares, dentre os quais apenas uma mulher, a única a votar contra.

Em 2009, em Pernambuco, o médico obstetra Olímpio Moraes foi excomungado por um arcebispo por ter interrompido a gravidez de uma menina de 9 anos. Outro detalhe: ela esperava gêmeos, frutos de abuso sexual por parte do padrasto. O inquisidor, digo, o arcebispo, colocou-se no lugar daquela menina? Colocou-se no corpo daquela menina que brincava de boneca mesmo no hospital? Nossa cultura está repleta de situações nas quais a sociedade se apropria do corpo, sobretudo do corpo feminino.

Dia desses, recebo uma mensagem em meu facebook, de um rapaz perguntando se eu era a Alice Zanella cdzinha (sic). Respondo que não sou "cdzinha", sou crossdresser. Ele insiste no diálogo. Você tem um blog? Respondi que sim, achando que ele se referia ao "Alice no país dos homens" ou às minhas publicações no "Recanto das Letras". E meu interlocutor: manda para mim um daqueles vídeos seus? Eu: vídeo, que vídeos? Publico textos. O diálogo segue: não é você que faz aqueles vídeos transando? Ele não usou a palavra "transando", diga-se de passagem. Deu-me um frio na espinha, como dizia minha avó. Será que alguém fez alguma montagem? Pedi a ele o endereço do blog. Ufa!! Não era eu. Aliviada, pude constatar que há uma Alice Zanella, acho que de algum estado do sul, que se intitula "cdzinha" e publica vídeos com suas vigorosas performances sexuais.

Não critico a Alice Zanella do sul. O que ela faz com seu corpo em nada me agride. Mas aquela não sou eu. Cada mulher tem o direito sobre o próprio corpo, e é por isso que devemos lutar, é isso que devemos defender. O meu interlocutor, assim como apareceu na minha rede social, sumiu. Decepcionado que ficou comigo.

Opostamente, um homem paulista com quem venho mantendo uma amizade virtual, quando nos conhecemos perguntou: você é crossdresser, né, e não transexual? Confirmei. Porém, não contive a curiosidade em perguntar por quê? Uma crossdresser é mais sofisticada, carinhosa, uma transexual é mais atirada. Palavras dele, registra-se. Não sei se isso é uma verdade, sempre desconfio das verdades, nada nos engana mais do que elas. Mas estou certa de que a visão do meu amigo se baseia na percepção que tem do corpo.

Continuo tomando meu café com adoçante enquanto em frente ao computador agora. Preciso emagrecer pelo menos uns dois quilos, eu não seria uma mulher se não quisesse emagrecer. Ah, o médico excomungado pelo arcebispo católico, relembrando o caso, em 2016, afirma que nada mudou em sua vida depois da excomunhão. Este arcebispo tivesse nos conhecido, estaríamos, Alice do sul e eu, excomungadas também. Para nossa indiferença.

Alice Zanella
Enviado por Alice Zanella em 11/11/2017
Código do texto: T6168835
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