A FLOR NA CASA DA MINHA AVÓ

Não adianta fingir, a guerra existe. Olhe bem aí ao seu redor. Talvez você não veja os tanques, os aviões, as bombas, talvez você não ouça o barulho das metralhadoras. Mas apenas pássaros voando ou assovios de quem tenta distrair-se da fadiga do dia a dia.

Em uma das trincheiras da Primeira Guerra Mundial eu temo a morte. A morte pode chegar a qualquer momento. Eu nem sei mais qual país eu defendo. Qual a minha bandeira. Quantos pertencem ao meu batalhão. Eu não sei de nada. Eu só sei que eu tenho que matar enquanto vivo eu estiver. A vida é assim. Todo soldado tem uma namorada que foi deixada em sua cidade, no entanto não sabe se vai voltar a vê-la. Uma flor é como uma namorada de soldado. Eu vi uma flor na casa da minha avó, córrego do Cedro, no longínquo ano de 1980. Depois as coisas começaram a perecer. A guerra do homem contra as doenças estava em curso. Aliás, essa guerra sempre está em curso. Quando voltei, não vi mais a flor. Nesse caso não foi o soldado que morreu, mas a namorada. A ordem das coisas na vida costuma se inverter.

Quem é o inimigo? Renato Russo, o nosso Rousseau aqui de Pindorama questiona. A tarde parece estar cada vez mais plúmbea e, às vezes, tenho medo que as bombas caiam sobre nossas cabeças como cocô de pássaros desavisados.

Uma turista espanhola morre na rocinha vítima de tiroteio. Uma criança morre em algum ponto do mapa e o nosso silêncio é para que ninguém escute os nossos gemidos e ou grito de socorro do próximo.

E a canção do Senhor da Guerra? Existe alguém que quer te comprar como se compra uma noite da prostituta (prostituída é o correto) para você trabalhar ou lutar. Você precisa comer. Você precisar sobreviver nessa cadeia socioalimentar. Não sei de qual nível trófico você é e tão pouco de qual eu sou. Mas nossa audição continua ouvindo os assovios de gente fadigada, de manhãs mornas temperando nossas santas e frias guerras cotidianas. Como você conquistou o território que você domina em sua casa? Teu cônjuge tenta ganhar terreno e você finge que deixa, mas no fundo é você que comanda como se comandasse o presidente de uma poderosa nação. Há quem faça de sua língua uma espada.

Enquanto eu festejo a vitória sobre a Alemanha e penso que eu também vou desfrutar de Alsacias e Lorenas, percebo que eu sou o alemão faminto, o soldado que pede esmola. Tenho a vergonha corroendo por dentro como um câncer e chego a pensar que somente outra guerra lava a honra. É preferível lavar a honra que a roupa suja.

Alguém há de esfregar em nossas caras o tratado. Versalhes é para dizer a nós, os humilhados, que temos que engolir o choro.

Mas enquanto engulo meu choro junto com aguardente, penso em fazer o céu desabar sobre a minha cidade. E o que eu penso vai além de fingir ser soldado a tarde inteira.

O grito reprimido com cassetetes e algemas, as lembranças da ditadura militar, o homem que ordena a juventude escrever a giz em quadros de escolas públicas o seu nome para 2018 e diz defender uma escola sem partido. Sinais que me faz sentir que ser um alemão humilhado não significa ser alguém que renderá a qualquer discurso fácil em tempo de dificuldades. Eu sou um alemão pós Primeira Guerra Mundial de todas as cores, de todos os continentes, de todos os credos e de todas as classes. Prefiro continuar ouvindo o assovio da fadiga e o canto do pássaro alheio ao chumbo preste a ser derramado sobre suas asas que matar, seja lá o que for, ou quem for.

24/10/2017

Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 24/10/2017
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