LEMBRANÇA ESCOLAR

Dia de votação. Adentrei a velha e boa escola rumo à seção 20. Tão logo atravessei a larga porta de entrada volvi o pescoço para a esquerda e observei algumas mudanças no ambiente. Tudo bem arrumadinho. Alguns móveis e ornamentos bem modernos; essas coisas bonitas e pouco duráveis que induzem a troca constante. A memória buscou uma mesa larga e pesada, de madeira espessa e escura, fornida, como as carteiras onde sentávamos emparelhados. Um flash de ilusão pôs à minha frente uma figura feminina, de cabelos escuros e levemente ondulados, na altura dos ombros, com um rosto cheio e bonito, sempre realçado pelos brincos de argolas. Meu Deus! Podia até vê-la novamente, ali, sentada naquela cadeira que tinha braços em forma de arcos e que, aos meus olhos, assemelhava-se a um trono. E bem diante do “trono”, a bater compassadamente, um antigo e fascinante relógio de pêndulo, ricamente entalhado em madeira maciça. Aquele tic tac contínuo parecia cadenciar o andar da vice-diretora. Em pensamento, podia vê-la linda e loira, olhos da cor do mar, tal qual uma princesa dinamarquesa; exibindo trajes da moda, equilibrando-se nos tamancos de saltos altos e grossos que faziam aquele toc toc charmoso no assoalho verde.

Perdida em recordações, tive ímpetos de subir a escadaria para rever a sala onde cursei a terceira série. Lembrei da professora, com seus enormes óculos de aro de tartaruga e de um bilhetinho receptado segundos antes de iniciar uma prova. Ela, astuciosa e implacável, imaginara tratar-se de uma pesca. Puxou o papel que estava dobrado e guardado cuidadosamente entre as folhas do caderno, leu e após constatar que tratava-se apenas de uma ingênua declaração de amor, embolou-o, atirando-o com desprezo na lixeira. Depois, levantou os óculos e fixou os olhos em mim e no remetente. A boca não disse nada, mas os olhos disseram tudo. Senti o rosto arder. Abaixamos as cabeças, censurados e envergonhados.

Sacudi a cabeça e tentei voltar à realidade, mas ao seguir pelo corredor tive a impressão de ouvir gritos, gargalhadas e a cantiga de roda: “Como pode o peixe vivo /Viver fora da água fria/Como poderei viver...”. Por um instante me senti menina outra vez. E me pus a acompanhá-la, cantando para dentro; só para mim. Silenciei ao entrar na sala, ou melhor, na seção. Enquanto aguardava numa fila, passeei os olhos no ambiente em busca de resquícios de um passado feliz. As telhas velhas, enegrecidas, tingidas de limo, me acolheram. Olhando para o alto me senti familiarizada com o lugar. Por um instante, tudo que estava ali desapareceu. Ressurgiu minha sala de aula.

Vi cartilhas sobre as mesas, aviõezinhos de papel cruzando o espaço, caderninhos forrados com papel de embrulho, a professora diante do quadro de giz e rostinhos travessos, com risinhos maliciosos, entredentes, soletrando: ca, co, cu.

“O pensamento parece uma coisa à toa/ Mas como é que a gente voa quando começo a pensar...”. É o que diz a letra da famosa canção de Lupicínio Rodrigues. E é a mais pura verdade! Uma lembrança vai resgatando outra e um mundo perdido vai sendo aos poucos reconstruído. De repente, como num passe de mágica, a merendeira ressurgiu, trazendo uma enorme chaleira, cujo bico soltava fumaça e o melhor mingau de milho que havia na face da terra. De repente, enxerguei a turma inteira rindo, risos tolos, porque a professora da terceira série atravessava o corredor arrastando um rabo de papel, tipo rabo de pipa, preso a sua saia por um raminho de carrapicho.

Ainda estava com o gosto da merenda na boca e com os risos ressoando na memória quando senti uma mão tocar em meu ombro e depois estender-se num cumprimento muito afável e cordial. Era mesmo dia de reencontrar o passado! Pois, a mão que me saudava era de um velho conhecido. Olhei para o adulto, homem feito, comerciante batalhador, pai de família, e enxerguei um menino ruivo, de rosto sardento e dentes falhados, moleque endiabrado, fogo nas veias, que gostava de colocar rabos de papel com carrapicho e que escrevia nomes feios com ilustração e tudo. Mais de uma vez o vi de castigo no canto da sala ou recebendo um sermão na diretoria. Vi em seu olhar que compartilhávamos as mesmas lembranças. Mas não houve tempo para uma conversa. Um mesário sinalizou que era minha vez de votar. Fui; votei e saí da sala. Ao atravessar a porta de saída da escola, ouvi uma saudação e me deparei com um rosto conhecido e há tempos não visto. Era o autor do bilhete... 34 anos depois.