Filhos de uma pátria menor

Filhos de uma Pátria menor

Adriano Moreira, político português de 92 anos de idade, afirmou no Jornal i o seguinte:

“A primeira Declaração Universal dos Direitos do Homem diz que "todos os homens nascem com igual direito à felicidade". Mas tinha vírgulas: os nativos não, os escravos não, as mulheres não, os trabalhadores não... E tem levado algum tempo a apagar estes nãos com uma série de combates cívicos, por vezes com recurso à violência. É necessário garantir os direitos para que todos construam em liberdade o seu futuro.”

Numa pequena vila a sul de uma cidade de uma província a norte do Rio Kwanza, no passado mês de maio, um pequeno grupo de jovens reuniu-se para debaterem a sua condição de cidadãos da República de Angola.

Um pequeno grupo de jovens, todos eles nascidos naquela vila e todos eles estudantes, elaboraram uma declaração de intenções a apresentar às autoridades provinciais.

O texto, metodicamente elaborado, tinha princípio, meio e fim.

Era um texto escrito de forma a também poder ser lido a viva voz, ser gritado em público para provocar reacções a quem o ouvisse.

Os jovens estavam em poder de uma declaração que íria levantar dúvidas e protestos, reacções musculadas e ameaças de punição, sanções e cativeiro.

Corriam o risco de ajudarem a aumentar o número já impressionante de presos por crime de pensamento. Cativeiro infâme, mas óbvio e necessário, pensaram.

Não levariam as suas convicções para trás das grades, somente os seus corpos, a sua juventude, os seus medos, mas as suas convicções não!

Eles que os viessem prender, amarrar, ameaçar, bater, mas a declaração já estaria livre, solta pelos montes e vales daquela província ao norte do rio Kwanza, pelas províncias vizinhas, pelo país. Seria falada nos corredores do poder, nos ministérios, nos gabinetes...

Seríam cantadas baladas sobre os seus feitos, sobre a sua coragem e perseverança. Ruas teriam os seus nomes e nunca mais a sua vila seria desconhecida, nunca mais o seu povo seria vítima de nada que o afligisse ou atacasse...

A Declaração era simples.

Assim declararam:

Nós, jovens desta província ao norte do rio Kwanza, declaramos que aceitamos viver esquecidos, aceitamos a falta de oportunidades e a falta de programas para a nossa província.

Nós, de livre vontade, requeremos a Vossas Excelências que esqueçam de uma vez por todas os compromissos celebrados pela constituição da República de Angola em relação à juventude, saúde e educação gratuita, trabalho, família, segurança, liberdade e felicidade.

Abdicamos desses direitos e, mui respeitosamente, cedemos os nossos lugares nas escolas, nos colégios e universidades a outros que seja de Vossa conveniência. Cedemos, de igual modo, os empregos porvir na função pública.

Estaremos, ainda assim e apesar de tudo, disponíveis para sermos os vossos soldados, os vossos descartáveis, conforme for a vossa necessidade e urgência.

Queiram saber que abdicamos do nosso lugar no debate nacional sobre a lei de nacionalidade, lei geral do trabalho, lei de terras, lei dos partidos políticos, lei de investimento privado, lei das finanças e economia, lei da igualdade do género, lei da comunicação social, lei do culto religioso, investimento público etc.

Recusamos o nosso direito de participar nos debates de decretos, projectos-lei, despachos e adendas.

Queiram, Vossas Excelências, sentirem-se desobrigados da nossa participação activa no que concerne ao debate democrático útil, esqueçam a necessidade da nossa militância e intervenção cívica, ignorem o que quer que seja vindo da nossa parte.

Declaramos solenemente que, desde este dia em diante, seremos o modelo exacto do que Vos apraz, sem exigirmos nada que exceda a simples existência muda, inútil e inócua.

Pedimos, mui respeitosamente, que de agora em diante não anunciem programas para a juventude, não publicitem manuais escolares gratuitos, nem merenda escolar, não abram as portas dos hospitais, não subvencionem o transporte escolar, que retirem as bolsas de estudo, eliminem as vagas universitárias, fechem os programas desportivos, as bibliotecas, os teatros, os cinemas.

Pedimos que abram valas comuns e descartem o ónus de cemitérios dignos. Rogamos que não arranjem as estradas, não construam pontes, não restabeleçam as redes de água, luz e esgotos da nossa província.

Declaramos que nos abstemos, que nos separamos do vosso programa de reconstrução nacional, das vossas políticas de reestruturação social, dos vossos investimentos nos diversos campos da vida nacional.

Compreendemos, finalmente, que não fazemos parte do todo da nação, independentemente da idade, do género, habilitações literárias, cor política ou credo religioso.

Compreendemos esse tanto porque, apesar dos inúmeros pedidos de ajuda, apesar das missivas enviadas a demonstrarem as dificuldades extremas em que vivemos, apesar das consecutivas demonstrações que jamais entraremos na vida do país sem o apoio de Vossas Excelências, jamais estaremos ao nível da exigência do mundo que nos rodeia, jamais recuperaremos a desvantagem gritante que temos em relação aos jovens de outros centros urbanos, a desvantagem de sermos angolanos do interior, a desvantagem de sermos jovens em Angola no século XXI, pois, nunca tivemos resposta a nenhum dos nossos veementes pedidos de ajuda, de socorro, nem uma linha, nem um telegrama, um emissário que fosse que nos dissesse na cara: - Esqueçam, vocês são filhos de uma pátria menor!

Declaramo-nos cidadãos de uma Pátria Menor, uma pátria sem nome, sem constituição, sem honra, sem hino. Uma pátria esquecida, amedrontada e sem recursos.

Sentimos que vivemos agora numa nação tão diferente da Pátria de Vossas Excelências, que decidimos libertar-Vos de todas as responsabilidades e compromissos e declarar Independência unilateralmente.

O nosso sentimento de independência está na razão exacta e proporção do cuidado que Vossas Excelência têm pelas nossas vidas e necessidades.

Aqui declaramos Independência do nada que nos dão!

Assim, certos da vossa melhor atenção sobre este assunto, e sem expectativa de Vossa resposta, queiram receber os nossos mais sinceros votos de sucesso e felicidade.

Estamos à vossa disposição para qualquer esclarecimento.

Atenciosamente,

Grupo de Jovens de uma província ao norte do rio Kwanza.

P.S. Junto enviamos os originais dos nossos bilhetes de identidade para que façam uso deles conforme entenderem.

A declaração estava escrita e corrigida. Debatida por todos, assinada por todos.

A declaração foi entregue com protocolo e tudo no Governo Provincial desta província a norte do rio Kwanza.

Porém, esta declaração não teve o efeito esperado, tive notícia há poucos dias.

Este grupo de jovens não recebeu resposta nenhuma, nem a norte, nem a sul do rio que dá nome à nossa moeda.

Nem foram presos em aparato televisivo, nem foram à rádio, nem tiveram fotografias nos jornais, nem nenhum chefe entendeu que era importante. Nada.

No dia seguinte, apesar da humilhação de não serem sequer detidos, arrastados, abalroados e agredidos, foram-se entregar à polícia, exigiram as suas celas e as bastonadas previsíveis. Exigiram a reposição da ordem e da moral!

Nada. Nem um arranhão para servir de prova e patente...

Bem, possivelmente, foi o primeiro passo para lado nenhum, mas tentaram e fizeram mais do que muitos que conheço, que andam por aí a tentarem sem sucesso, a pedirem o mínimo previsível, o mínimo que é seu de direito, mas, também eles, todos nós, temos sido filhos de uma pátria menor.

Victor Amorim Guerra