Uma conversa em um clube de terceira idade                                                       
“Foi sutil, quase invisível, me lembro até o dia em que desconfiei bastante embaraçado, que as pessoas haviam mudado em deferências, quando a mim se dirigiam. Aconteceu pela primeira vez quando juntos, eu e aquela mocinha, ambos em pé no ônibus, observamos ao mesmo tempo a poltrona que vagou e ela, gentilmente, me cedeu o lugar.Algo estava muito errado! Não comigo é claro! Meus braços continuam fortes; minhas pernas, firmes pela caminhada diária, me levam aonde eu quero. Talvez, apenas talvez, minha capacidade de trabalho físico tenha diminuído um pouco. É natural que todos passem por isso de vez em quando.
 Mesmo assim, sem mudança alguma, as crianças da minha rua começaram a me enviar beijos e sorrisos carinhosos que passei a retribuir na mesma dimensão. Não custa nada e me faz bem, pois tenho notado que meus filhos andam tão ocupados com seus negócios e desejos de sucesso, que esqueceram um pouco de mim. Assim, eu e aquelas crianças já jogamos tantos beijos a distância que acabamos formando, no ar, uma cortina de amor, sob a qual eu gosto de me sentar e ficar meditando. Essas meditações me trouxeram a ideia de me olhar no espelho, de uma maneira bem crítica, para esclarecer as minhas dúvidas se alguma coisa havia mudado em minha pessoa. Isso foi muito difícil, pois a minha imagem formada no meu cérebro, ao longo de todos esses anos, me impedia de ver o meu aspecto atual. Parecia que tudo estava igual, mas não sou nenhum tolo para não perceber que as outras pessoas já não me enxergavam do mesmo jeito. Fiquei muito angustiado com essa situação e resolvi trocar todo o meu visual. Releguei ao fundo do armário, camisas e ternos tradicionais. Cabelos brancos nem pensar! Tênis no pé, naturalmente, calças jeans, lentes de contato, tudo perfeito. Saio na rua, vitorioso, quando ouço uma das crianças dizer, “Olha mãe, é aquele vovô. Ele está tão bonitinho!“ Que amargura! Quem será que está com a razão? Eu tenho certeza que sou o mesmo e é necessário provar isso para todos. A tal carteira para transporte gratuito não entra no meu bolso, pois seria a mesma coisa de assinar o meu atestado de velhice. Meus amigos que a façam. Eu continuo pagando a minha passagem. Já pensou se alguém me vê entrando pela porta da frente? Além disso, estou como sempre cortando a grama do nosso jardim e trocando as mudas das plantas. Ninguém pode duvidar da minha resistência. Tem um fato que está acontecendo que estou guardando em segredo. É que a minha mente comanda para os meus músculos uma determinada quantidade de força de trabalho que eles não conseguem obedecer. Está havendo, portanto, uma falta de sintonia entre ambos. Não me perguntem, não sei o que é.
 Alguns amigos queriam que eu freqüentasse um clube de terceira idade para preencher o meu dia. Achei essa proposta um absurdo, mas fui por uma vez para ver como é e satisfazê-los. Se eu falasse que não gostei estaria mentindo. Foi tão bom ouvir as músicas, conversar sobre as minhas flores e o mais curioso: encontrar várias pessoas que também estavam tendo dúvidas se as suas imagens no espelho eram reais ou não. Fiquei impressionado. Devo admitir que queira voltar lá. Não é um lugar para mim, é claro, ainda não estou nessa época, afinal tenho só setenta anos. É que anda me sobrando tanto tempo que não custa ajudar aquelas pessoas. “Afinal esses clubes precisam tanto de jovens voluntários e tenho certeza que serei um deles”.
 
 
 
 
 
 
 
 
Heloísa Mamede
Enviado por Heloísa Mamede em 18/07/2017
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