Um fato, uma crônica ou Me dê o assunto que eu cronico (Vicência Jaguaribe)

17/02/2013

Para a Nadja,

que disse nada conhecer

da asa-branca.

Após ler uma crônica em que falo da seca do Nordeste e na qual intertextualizo com “Asa-branca” e “A volta da asa-branca”, uma amiga me disse, por e-mail, que nunca vira essa ave; não tinha a menor ideia de sua aparência. E, a propósito, lembrou-se de um fato acontecido na véspera do Natal, em um supermercado: ela pediu um chester. Uma senhora que estava perto ouviu seu pedido, olhou-a e disse: “Não compro carne de bicho que nunva vi”. Minha amiga refletiu e traduziu sua reflexão com estas palavras: “Fiquei pensando que ela estava certíssima. Quem já viu um chester? Você já viu?” Não, amiga, nunca vi. Aliás, com essa minha displicência para determinadas coisas, que nem sei mesmo quais são, nem posso dizer qual o critério usado para ela entrar em cena, só há pouquíssimo tempo tomei conhecimento da existência dessa ave.

Ora, eu, à moda da mulher do supermercado, também não gosto muito de botar a mão ou, no caso, a boca naquilo que não conheço. Via de regra, não me dão prazer novas experiências gastronômicas. Aliás, por natureza, sou pouco aventureira. Agrada-me é pisar em terreno conhecido, em terra firme. Do desconhecido — pessoas, coisas, animais, lugares, comidas, etc. — me aproximo com cautela. Não me dou bem com imprevistos. Aprecio um duelo com data e hora marcadas, padrinhos e armas escolhidos com antecedência e que se dá em um espaço familiar. Dizem-me que estou perdendo o melhor da vida. Que seja! Mas sou assim. Que se há de fazer?

Sobre a asa-branca — Ah! Já ia esquecendo, a palavra se escreve com hífen, segundo o Houaiss, portanto, na crônica passada (Houve uma crônica passada), grafei-a errado; por favor, corrijam —, você revela que não a conhecia nem tinha a melhor ideia de sua aparência.

Nem eu, amiga. Quer dizer, não a conhecia e continuo a não conhecê-la em pessoa. Mas agora, porque tive de pesquisar para redigir a crônica anterior, conheço-a de fotografia e sei algumas coisinhas sobre ela. Posso lhe passar — a você, amiga, e a outros leitores que estiverem interessados — algumas informações.

Começo com o dado mais prosaico: a asa-branca é prima-irmã do pombo. É isso mesmo, e ambos são conhecidos cientificamente como columba picazuro. O vocábulo columba, todos sabemos, é latim puro — columba, ae, ou seja, “pomba”. Deu, em português, columbino e, por assimilação progressiva, colombino, que significam “aquilo que é relativo a pombo ou pomba, ou com eles se assemelham”. Metaforicamente, indicam aquilo que é “desprovido de malícia, cândido, puro”. Favor, não confundir com colubrino, herdado do latim, colubra, ae, isto é, cobra. O vocábulo colubrino quer dizer, pois, o que é “relativo a cobra, em forma de cobra, semelhante a cobra” e, por extensão de sentido, “sinuoso” e também “o que se apresenta de forma espiralada; enroscado”. Já o vocábulo picazuro, segundo pesquisa na Internet, deriva da palavra indígena picázuró (guarani do Paraguai), cujo significado é “pomba amarga ou amargosa”, uma referência ao “gosto amargo desta ave quando se alimenta de uma certa quantidade de frutos”.

Conforme se pode ver, uma característica bem em consonância com a realidade de pelo menos um de seus habitat, o Nordeste brasileiro, onde a vida é, para um grande número de pessoas, dura, penosa e triste. Amarga, mesmo. Exatamente como diz João Cabral de Melo Neto, uma “vida severina”. Mas a asa-branca habita outras regiões do país, como também a Argentina, a Bolívia e o Paraguai.

Como já disse, ela é da família do pombo, portanto, muito parecida com os pombos que conhecemos, só que bem maior, chegando a medir 37 cm. Ela não é, propriamente, um pássaro branco. Seu nome se justifica pela faixa branca na parte de baixo do corpo, que pode ser vista quando está no galho de uma árvore ou quando alça voo. A ponta e o contorno das asas também são esbranquiçados. O resto do corpo é acinzentado: partes de um cinza mais forte e partes de um cinza mais desbotado.

Emite um canto profundo, soturno e baixo, com três a quatro sílabas: gu-gu-guuu, gu-gu-guuu. Alimenta-se de frutos pequenos, insetos e sementes. Mais consciente do que os humanos, reproduz-se de maneira controlada e planejada, preocupando-se com os problemas advindos da superpopulação: bota um ovo de cada vez, o qual recebe os cuidados do papai e da mamãe até o filhote deixar a casca. E este, até estar em condições de viver sem ajuda.

Bem, eis aí a ficha (não policial) da asa-branca que fez do Nordeste brasileiro seu habitat. Digo assim porque há vários tipos dessa ave, dependendo da região por ela habitada. Mas a que descrevi foi a cantada por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga.

Não sei se ficou enfadonha esta descrição, mas, como minha amiga queria, realmente, conhecer o famoso pássaro cantado em verso e, agora, em prosa — embora esta prosa não esteja nem de longe à altura dos versos belos e tristes, talvez belos, ou mais belos, porque tristes —, da canção popular, está aí o que fiquei sabendo dele.

Bem, amiga, seu e-mail deu crônica, consoante você previu. É como disse, uma vez, nossa amiga Abnisa: “Crônica puxa crônica”. Bom título para um livro de crônica, não acham? Por obséquio, não se apossem dele. Não o roubem de mim.