ARIADNE COM UM GATO NO REGAÇO

“As mulheres existem para que as amemos, e não para que as compreendamos”.

Oscar Wilde

Para Ruan, que sabe observar as mulheres com mil olhos de sua rara inteligência.

Ela tem os cabelos azuis e um gato nos braços. É moça, muito moça e olha o céu. Tem o olhar para o desvão do nada, perdido. Talvez mire uma estrela, um infinito perdido de luzes de um cometa, talvez mire um sonho que se esvai na cauda luminosa de um asteroide qualquer.

Por que olha o céu, se tem um gato a ronronar nos braços? O mesmo gato que a olha como se ela fosse a sua dona, o mesmo gato que quer carinho e que se aconchega em seus braços, esfregando neles o pelo negro com carinho, sei lá... animal?!

Um rapaz sentado na calçada a tem na retina por milhares de segundos suplicantes, mas não vê drama na cena, ao contrário, só enxerga um mundo de imensuráveis possibilidades... que se iniciam nas madeixas azuis de Ariadne. Todavia, ela não está para ninguém, posto só ter olhos para o céu e para o bichano aconchegado ao seu regaço.

Espera um mundo de chocolates, de guloseimas? Espera as delícias do paraíso ali parada, pregada ao chão como um arbusto insólito sob o vento? Talvez tenha diante dos olhos uma legião de anjos tocando alaúdes de cítaras para embalar seu gatinho querido. Nunca se saberá.

Ela continua alheia ao mundo circundante. Os cabelos esvoaçam na brisa e, confundidos com as simpáticas tiras de sua blusa espraiam as vozes da noite tão negras quanto o seu gato. E o gato? Dorme. Dorme feliz, negligente, calmo e também alheio a tudo, aconchegado ao regaço de Ariadne, tão cúmplice, tão negro, tão...

Poder-se-ia afirmar que a imagem de Ariadne combina antes com um buquê de gérberas vermelhas que com um gatinho supostamente abandonado, ou que ela lembra vagamente a moça do conto O rouxinol e a rosa, de Oscar Wilde, que ela seria a musa de uma tela de Renoir. Nada disso muda, todavia, a romântica gravidade do instante: ela e o gato negro em seu regaço.

Quem sabe se ela espera o improvável? Não se pode afirmar. Tampouco se sabe se olha o céu a pedir apenas um milagre supremo, se sua vida cabe num soneto de Neruda, se gesta na quietude do momento, um instante tão significativo que lhe servirá como alegoria de uma realidade não vivida.

Talvez ela espere inutilmente o seu Teseu, o herói que inunda o oceano de sua existência? E se olha o céu com o gato entre os braços, não terá um pensamento ilhado nas paragens ignotas da dor que a faz abandonar-se assim à solidão?

Para o rapaz sentado na calçada, a imagem de Ariadne – a moça dos cabelos azuis – parada no pátio do Campus I, trazendo nos braços um gatinho preto, por si mesma se basta. Basta pela singela que faz tudo o mais possível. Por isso mesmo, acometido de uma estranha mudez, ele somente a observa e o gatinho que ela traz consigo e é o bastante.

ELMANO ARAUJO
Enviado por ELMANO ARAUJO em 26/05/2017
Código do texto: T6010128
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