Na Terra Brasilis — uma lenda moderna

Vicência Jaguaribe

O mundo em que vivemos, com seu pendor revisionista e iconoclasta, não é muito propício à criação de lendas. Mas, de vez em quando, aparece alguém que manipula os dados da sorte, e surge uma personagem que se presta a transformar-se em lenda viva como a que narrarei a vocês.

Era uma vez um reino cujas terras se alongavam da linha do equador aos confins do hemisfério sul. Um país tropical, abençoado por Deus, que fizera seu filho unigênito nascer em umas das províncias mais famosas daquelas plagas. Nesse reino, conhecido como Terra Brasilis, as palmeiras vicejavam lindamente, visitadas por sabiás entoados, que cantavam como nenhum outro pássaro, em nenhum outro recanto da Terra. Aliás, já dizia um dos mais populares vates daquele torrão querido — condenado ao exílio por não ser amigo do rei — que as aves que ele ouvia nas terras do desterro não gorjeavam como as de sua terra natal. Também está imortalizada em sua poesia a verdade inelutável de que, naquelas plagas, os céus tinham mais estrelas; as várzeas, mais flores; os bosques, mais vidas; e a vida, mais amores.

Nos dias de hoje, alguns intelectuais revisionistas põem em dúvida a veracidade do que está expresso nos versos do grande bardo, os quais viraram slogan patriótico e constam na bandeira nacional, em substituição a uma caduca e inexpressiva legenda positivista, “Ordem e Progresso”: Nosso céu tem mais estrelas, / Nossa várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida mais amores. Não, não questiono as palavras do festejado poeta, mesmo porque seus versos embalavam o povo e funcionavam como o circo do Panem et circenses dos romanos. São, portanto, versos úteis, e melhor, além de úteis, doces — utile et Dulce.

Nesse reino, porém, as benesses da terra pródiga não eram distribuídas com justiça, daí haver lá regiões que rivalizavam com as mais ricas do mundo e outras que se igualavam aos grotões miseráveis da Ásia e da África. Mesmo nas regiões mais ricas, castelos e palácios esplendorosos erguiam-se aos pés de morros onde se equilibravam barracos de cartão postal. Não era, portanto, de admirar que aquela nação tivesse os piores índices sociais do mundo em analfabetismo, desnutrição, mortalidade infantil, saneamento básico, violência urbana, exploração infantil, prostituição juvenil, tráfego de drogas e, coroando todas essas maravilhas, uma corrupção política endêmica.

A capital do reino, de nome Brasiliana, primava pela pompa e circunstância, com castelos de sonho, bailes nababescos, mulheres deslumbrantes nas bordas de piscinas olímpicas — a capital ficava na região central do país, longe, portanto, da costa — e políticos desonestos e farsantes, mas também precavidos, com alentadas e alentadoras contas nos paraísos fiscais espalhados pelo mundo.

Já estava na hora, pois, de aparecer um messias guerreiro para guiar aquele povo triste, mas cordial, na guerra santa por uma vida digna. Surgiu ele de uma das regiões mais pobres do reino. Apareceu, envolto em uma aura de mistério. De família desconhecida, semianalfabeto, baixinho e deselegante. Mas ostentava uma marca física, que levou o povo a associá-lo aos grandes heróis mitológicos — a falta de uma das falanges de um dedo da mão direita, sinal inequívoco de um ser predestinado.

Mas, apesar de todas as evidências, não se tinha certeza de que aquele desconhecido, que criara uma facção política de oposição ao rei e cercava-se de cavaleiros impolutos e corajosos, mereceria mesmo ocupar o trono quando o velho monarca, sem herdeiros, fosse prestar contas a Deus, o que não demoraria muito. Então, os ministros do reino resolveram submeter o novo líder, cujo nome, por si só, já era uma lenda — Luís Artur — a cinco provas definitivas. Se ele saísse vitorioso das cinco, seria alçado à condição de príncipe herdeiro e esperaria a morte do soberano para receber a coroa real:

primeira prova — conquistar, sendo quase analfabeto, seguidores entre a intelligentsia do reino;

segunda prova — articular um discurso disfarçadamente populista de modo a atrair o populacho e as classes médias;

terceira prova — ser capaz de fazer alianças políticas à esquerda e à direita;

quarta prova — manietar seus correligionários radicais e apresentar um programa de governo em que a filosofia neoliberal sobrepujasse os dogmas da filosofia marxista;

quinta prova — mostrar ser um espécimen do gênero humano refratário a qualquer acusação, a qualquer boato, a todo e qualquer respingo de lama.

Vencidas as cinco provas, na condição de príncipe herdeiro, Sua Alteza Luís Artur deu início à composição de seu ministério, requisitando seus fiéis cavaleiros, todos eles treinados nas trincheiras das guerrilhas urbanas e nas lutas camponesas. Quando o velho rei empreendeu sua viagem derradeira — Morre o Rei, Viva o Rei — deu-se a coroação do novo monarca. Foram sete dias de festa no planalto central do país. Onde ficava a corte. E o novo rei, saudoso de seus tempos de luta popular sob a bandeira do Marxismo, convidou para os festejos alguns amigos íntimos — Fidel Castro, Evo Morales, Hugo Chaves e Mahmoud Ahmadinejad — atitude que deixou o Serviço das Relações Internacionais em maus lençóis,

Dois anos depois de ascender ao trono, Sua Majestade, o Rei Luís Arthur, viu sua Corte desmoralizada pela corrupção. Sua Camelot tropical abriu os portões para a expulsão de alguns de seus mais promissores cavaleiros, cujos lugares na grande Távola Redonda onde despachava o Rei foram ocupados por cavaleiros de outras facções. Mas o Rei continuava firme, governando da grande e lendária mesa todos os rincões da Terra Brasilis, que um dia ele sonhou ser uma nova Avalon. É, o rei continuava firme porque, como mostrou na quinta prova, tinha o corpo fechado, à prova de um ou outro Mordred da vida. Um corpo por onde resvalava, sem deixar resquícios, a lama que se acumulava a sua volta, subindo-lhe até a cabeça.

Terminada a história, ficam no ar os miasmas da lenda. Aviso, no entanto, que qualquer semelhança com personagens históricas, vivas ou mortas, é a mais pura coincidência. Mas pode-se dizer, ao fim e ao cabo desta narrativa, que cada povo tem o Rei Artur que merece, habita a Avalon que lhe cabe e ostenta a Camelot que lhe foi destinada.

O FIM