E a vida continuou ou Assim caminham os torcedores

Vicência Jaguaribe

12/07/2014


Escrevo no dia 12 de julho de 2014, ano da Copa do Mundo no Brasil, quatro dias após os malfadados 7 x 1 da Alemanha contra a seleção brasileira. Hoje ainda a seleção canarinho enfrentará a seleção da Holanda, a “laranja mecânica”, na disputa do terceiro lugar. Se quisermos traduzir o sentimento de milhões de brasileiros, teremos que dizer “para disputar o vergonhoso terceiro lugar”.
Sei que o placar de 7x1 é doloroso de ingerir e mais ainda de digerir. É desmoralizante para um povo que se acostumou a ver o escrete nacional sair vitorioso de inúmeros embates, tanto com adversários fracos quanto com campeões, verdadeiras máquinas de fazer gol. Sem contar — mas, sem dúvida, é melhor contar — com o pentacampeonato, que só o Brasil conquistou. Não nos esqueçamos, nós, povo de profetas e de técnicos, que a todo poderosa Espanha, campeã na última Copa, foi pra casa mais cedo; como foi a Itália, há algum tempo, a grande força do futebol europeu; como foi também o Portugal de Cristiano Ronaldo, o maior jogador do mundo na atualidade, segundo quem (a Fifa? Quem? Quem?).
O brasileiro acostumou-se também com algo muito mais sério: ter na vitória de sua seleção um instrumento não só de catarse de seus males, mas de sublimação de suas características negativas, como a humildade exagerada e a falta de confiança em sua própria força, em sua capacidade de reverter a seu favor um processo negativo. A cada vitória da seleção, abandonamos nossa quase crônica condição de vira-lata, como diz Nélson Rodrigues. Isto é, abandonamos nossa "humildade feroz de subdesenvolvidos", para a ela retornar a cada derrota.
Sei que, para torcedores apaixonados e radicais, uma partida de seu time em torneios estaduais e nacionais e um jogo da seleção em campeonatos internacionais, principalmente a Copa do Mundo, transformam-se em verdadeiras batalhas travadas a ferro e fogo. E, na cabeça desses torcedores, o resultado da cada um desses embates deve ser, indubitavelmente, sem mas nem embora, favorável ao Brasil. Melhor, ainda, se for uma vitória com uma boa margem de gols. E o país adversário — a Argentina, por exemplo, —, em um único jogo pode transformar-se no inimigo perpétuo da torcida brasileira.
Eu e você, leitor, que somos brasileiros, sofremos naquela escura terça-feira dos 7 x 1. Ora, o desempate por pênalti no jogo contra o Chile já nos havia deixado os nervos em frangalhos e a mim convencera da improbabilidade de chegar à final a nossa seleção. Mas assisti ao jogo com uma pontinha da esperança que se escondeu no fundo da caixa de Pandora. Usemos o bom senso: racionalmente analisando as primeiras partidas do Brasil nesta Copa e o perfil de seus adversários futuros, teríamos que chegar à conclusão de que a probabilidade de irmos à final era quase zero. Estou falando de probabilidade e não de possibilidade.
Sendo probabilidade "o grau de segurança com que se pode esperar a realização de um evento, determinado pela frequência relativa dos eventos do mesmo tipo numa série de tentativas", seria idiotice pensar na probabilidade de nosso escrete estar na partida que decidirá o primeiro e o segundo lugar. Suas partidas anteriores não nos deram o desejado grau de segurança que nos deveriam ter dado para esperar a vitória. Excetuando-se Neymar, Davi Luís e Tiago Silva, os outros atuaram, mas não convenceram de que estavam ali para ganhar a Copa de hexa. A consciência e a aceitação dessa realidade me prepararam para digerir a derrota logo no jogo contra o Chile. É claro que nem eu nem você, leitor, muito menos os milhões de apaixonados pelo futebol espalhados por aí, pensávamos que o jogo contra a Alemanha tivesse um resultado tão acachapante.
Poderíamos perguntar se haveria possibilidade de ganharmos a Copa. Bem, sendo possibilidade "a condição do que é possível, do que pode acontecer", quase tudo neste mundo é possível, desde a paz permanente no Oriente Médio até a vitória do Brasil nesta Copa. Uma das poucas coisas impossíveis de acontecer neste mundo habitado por homens racionais é a imortalidade. Pois é, quase tudo tem a possibilidade de acontecer, mas uns muitos quases, boa probabilidade de não acontecer.
Não adianta, agora, perguntar quem é o culpado. Felipão? Falam de Luís Felipe Scollari ofensivamente, como se ele não nos tivesse dado uma copa do mundo, pondo mais uma estrela no uniforme de nossos jogadores. Errou? Todos nós erramos, por isso não adianta e não convém jogar nem a primeira nem a última pedra em Felipão. Os jogadores fizeram corpo mole? Foram comprados, se venderam? Surgem, agora, várias teorias conspiratórias, desde a que diz que o problema de Neymar nas vértebras foi só armação, até a que diz que Filipão se reuniu com a comissão técnica, com diretores da CBF e com os jogadores titulares (e só os titulares) para combinar um alto dinheiro a ser pago ao técnico e à sua comissão; aos jogadores titulares e à própria Confederação Brasileira de Futebol, para perder para a Alemanha. Só não dizem quem será o pagador dessa dinheirama. Eu, pessoalmente — e ratifico, é minha opinião, só minha —, acho que acreditar nessa baboseira de conspiração é o mesmo que acreditar que o Presidente Kennedy continua vivo, escondido em um hospital; que Elvis Presley não morreu e que D. Sebastião, O Desejado, rei de Portugal, não morreu nas areias da África — nunca lhe encontraram o corpo — e que voltará, um dia, para devolver à Pátria sua grandeza perdida.
Vamos cair na real. Embora saibamos a importância dos jogos para o crescimento da humanidade — já ouvimos muito falar no homo ludens — um jogo é só e somente um jogo. Não é uma guerra sangrenta, onde no lugar da espada e das armas de fogo, usa-se, como instrumento de ataque, os dentes, os cotovelos, os joelhos, os empurrões, o choque das cabeças, as mãos e os braços e não sei mais o quê.
O mundo não se acabou nem vai-se acabar porque a seleção brasileira perdeu de 7 x 1 para a bem formada equipe alemã. 7 x 1! É estranho! Inacreditável! Doloroso! Mas é algo que aconteceu e pronto, como diz, em artigo, o jornalista americano Matthew Futterman, do Wall Street Journal, falando na manhã de quarta-feira no Brasil.
"Adivinhe o que aconteceu no Brasil na quarta-feira?
O sol apareceu. As pessoas foram para o trabalho. Elas dirigiram táxis, abriram supermercados, clicaram em seus computadores para tratar de assuntos jurídicos e financeiros. Médicos curaram os doentes. Assistentes sociais enfrentaram os problemas da grande pobreza neste país de cerca de 200 milhões. A vida continuou.."
É, a vida continua. Mas parece que disso não sabem os insensatos que desrespeitaram a pátria — que também é deles —, sujando de excrementos a sua bandeira e depois queimando-a. Crime de lesa-pátria, concordam? Os que fizeram isso são os mesmos que cantaram ardentemente o hino nacional nos estádios, sempre que o Brasil se apresentava. Esses mesmos continuam a queimar na fogueira ardente o técnico e os jogadores.
Tinha mesmo razão Augusto dos Anjos, quando disse, em “Versos íntimos”, que a mão que afaga é a mesma que apedreja.