OS CLÁSSICOS DA LITERATURA GANHAM (?) NOVOS SENTIDOS NA PÁTRIA EDUCADORA

 

     Se você é uma daquelas pessoas que se questionam por que tantos professores do Ensino Fundamental das Escolas Públicas brasileiras estão aposentados, readaptados ou licenciados pela psiquiatria, após a leitura deste texto, sua opinião, certamente, não será a mesma.
     Esses profissionais sofrem uma pressão psicológica intensa, no cotidiano escolar. Como se não bastassem a violência dentro e fora da escola, o descaso dos pais e o desinteresse dos alunos, há ainda alguns fatores agravantes: a falta de base dos períodos anteriores, fruto de uma "aprovação automática" que vem, ao longo dos anos, apenas mudando de nome, mas não de estratégias e práticas. Ademais, a  criação de projetos e mais projetos inexequíveis que não privilegiam a aprendizagem do aluno, tampouco respeitam a liberdade do professor de elaborar o seu planejamento com autonomia e criatividade, adaptando-o à realidade da escola e dos alunos.
     Não há projeto que garanta aprendizagem a quem não deseja aprender. Nenhum projeto será capaz de “acelerar” a aquisição do saber num indivíduo que tenha algum comprometimento de ordem mental.      Talvez, haja um certo maquiavelismo por trás disso tudo, para contribuir com o processo silencioso de "emburrecimento" dos nossos jovens que, sem Saúde e Educação, transformam-se em massa de manobra das intenções sub-reptícias de nossos governantes,por meio dessa política assistencialista que induz o aluno ao comodismo e à inércia.
     Desde o primeiro ano, a criança aprende a não valorizar o material escolar que lhe é dado: livros, apostilas, mochila, uniforme e todo o material de que ela necessita. Na adolescência, o aluno mal recebe esse material e já começa a destruí-lo: joga-o na rua, no valão, rasga-o ou, simplesmente, o deixa em casa. Afinal, como valorizar aquilo que nada lhe custou?
   O leitor deve estar intrigado com tamanho pessimismo e se perguntando:
     — Por que o professor não aproveita essa oportunidade, para explicar ao aluno sobre os impostos que os cidadãos pagam para que o jovem possa ter acesso àquele material?
     — O professor tenta, meu caro! No entanto, o assunto é abstrato demais para o aluno... Vejamos: ele mora numa casa pela qual a família não pagou; não paga conta de luz, mas tem ar condicionado e chuveiro elétrico; não paga conta de água, mas toma banho de piscina; não paga a assinatura, mas desfruta da mesma TV digital em HD que o professor “otário” tem de pagar caro para tê-la.
     E o assistencialismo não para por aí... Ah! como não falar do programa Bolsa Família? Graças à generosidade do governo, associada ao medo de represálias a que a Direção da escola  é submetida (tendo de alterar a frequência dos alunos faltosos) e da  facilidade de parcelamento, nas lojas de eletrônicos, o responsável pelo aluno carente usa o dinheiro desse Programa social para pagar as prestações do celular caríssimo, com internet e Wi-Fi, que o filho utiliza para brincar, bater-papo, tirar "selfies" para postar no facebook, ignorando a presença do professor e perturbando o bom andamento da aula.
      — E a lei que proíbe o uso de aparelhos eletrônicos em sala de aula? — Você me pergunta.
    — Está colada no mural da sala... Mas o aluno pode, meu leitor! Ele sabe que pode fazer o que quiser, inclusive provocar a ira do professor, gravando-lhe as reações para que, mais tarde, os pais recorram à justiça, processando-o por assédio moral, constrangimento, racismo, homofobia...
     Com o advento do maldito aparelhinho, o professor foi excluído ou "deletado" de sua função. As poucas crianças e adolescentes que ainda participam das aulas, parecem que só acessam a memória de curto prazo, se é que o fazem! O que aprendem hoje, amanhã já não lembram mais. O professor se sente incapaz, impotente e desestimulado. Afinal, ensinar o quê? Por quê? Para quê? Para quem?
  Assim,  dia após dia, ele vê distanciar-se dos seus ideais a profissão que escolheu por amor e vocação. São anos de sonhos levados pela avalanche do descaso, da desvalorização e do desrespeito. Abatido e descrente não consegue mais encontrar uma saída, para tornar a sua aula atraente. Se propõe um filme como estratégia de enriquecimento da aula, o resultado é desastroso! Não há condição para um debate, porque os alunos não se concentram e não têm subsídio para expressar suas ideias. Além do mais, o vocabulário lhes é muito restrito e eles se sentem envergonhados. Por isso, preferem dizer que "não sabem falar". Assim, o professor termina por falar e ouvir o eco de sua voz solitária...
     Quando se trata de leitura, então, a situação é muito pior. As novas gerações não gostam de livros e, se os leem, não são capazes de entender ou de interpretar a mensagem neles contida.

     A SME do Rio determina que todos os alunos devem escolher, na Sala de Leitura da Escola, pelo menos um livro a cada bimestre, para realizar a avaliação de produção textual. Aliás, uma prática que fora condenada há alguns anos pela equipe pedagógica da própria SME.
     É claro que os alunos odiaram essa determinação e muitos deixam para escolher o livro no dia da prova, por mais que haja incentivo dos professores.
     Para tentar descontrair um pouco e fundamentar o meu texto, vou narrar dois casos insólitos, mas verídicos, vivenciados por minha amiga Eduarda, professora de Sala de Leitura, apaixonada pela profissão.
     Faltavam apenas dois dias para a realização da referida prova, quando dois alunos do 9º ano entram na Sala de Leitura e, em tom agressivo, dirigem-se a ela:
     — Aí, pofessora, nóis qué tocar o livo da pova! – vale lembrar que o fonema “/r/” já caiu em desuso para a maioria dos estudantes da Rede Pública.
     A professora, vendo que não havia mais tempo hábil para a leitura de outro livro, desculpou-se dizendo ser impossível realizar a troca.
     — Ih! Essa pofessora é mó cheidimarra! Nóis vai fazê pova do livo que num gostô?
     — Mas, vocês leram os livros? Perguntou Eduarda.
Os dois até juraram que sim.
     — Diego, por que você não gostou do livro? Não foi você mesmo que o escolheu?
     — Eu iscoli, porque pensei qui tinha mulé. Mas o livo num tem mulé, elas nem aparece na história...
     — Que livro você leu?
     O menino abriu a mochila, retirou o livro e, revoltado, apontou-lhe o título:
     — É esse aqui, ó: “As minas do Rei Salomão”.
Segurando-se para não rir, ela pergunta ao outro aluno:
     — E você, Thiago, por que não gostou do livro?
   — Pofessora, na verdade eu gostei. Eu só num intendi muito...
   — Eu lhe disse que a linguagem era meio complicada para quem não estava acostumado a ler, mas você insistiu...
     — Não, pofessora, as palava eu intendi. Eu só fiquei bolado porque o esquilo que promete ficá acorrentado num aparece na história. Num vi esquilo nenhum. Ingual o do Diego, intende? Só que o meu é o esquilo...
     — Ai, meu Deus! Devo estar enlouquecendo! Qual foi o livro que você levou?
     — Esse aqui (e leu o título): “esquilo prometeu acorrentado”. Num intendi nada, maluco!
     — Bem, este caso é realmente complicado. Vocês nem sequer entenderam o título do livro! Primeiro, vou explicar a você, Diego. As “minas” de que fala o livro não são “garotas”, mas sim as "jazidas" de diamantes que pertenciam ao Rei Salomão, personagem bíblico. Entendeu?
     — Só num sei o que é jazida...
     — Vou tentar lhe explicar: jazidas são cavidades que os homens fazem na terra para retirar, no caso de Salomão, os diamantes, que são pedras preciosas, de muito valor. Entendeu, Diego?
     — E eu tavo pensano que, como esse tal de Salomão era rei, que ele pegava muitas mulé. Por isso, que eu quis lê o livro...
          — Agora, que você já pode entendeu a história, leia o livro novamente e venha conversar comigo sobre o que achou, antes de fazer a prova.
Já no seu caso, Thiago, observe que há um acento que diferencia o nome próprio Ésquilo, nome do autor do livro, de esquilo ( o animalzinho que você esperava encontrar).
     — Mas, pofessora, por que diz que ele pometeu acorrentado?
     — Prometeu, Thiago, é o nome da personagem. Um deus da mitologia grega que tinha o dom de enxergar o futuro. Ele foi acorrentado por Zeus, o deus dos deuses, por ter roubado o fogo divino e repassado aos homens. É uma história muito interessante! Quando você quiser, venha aqui que nós dois leremos o livro juntos e eu tiro suas dúvidas, está bem?
— Valeu, pofesora, vô vim hoje de tarde!
                              
     Os dois meninos deram uma gargalhada e  um deles comentou:
— Caaaaaaaraca, muleque! A gente somu muito burro, maluco!!!

     Eduarda sentiu-se culpada e ao mesmo tempo vítima de um sistema que, há muito tempo, parece querer brincar de “escolinha”. Sistema esse que prega a inclusão social, mas exclui da sociedade milhões de jovens que, embora exibam um certificado do Ensino Médio, cujos alicerces foram cavados na areia movediça do assistencialismo, não conseguem um emprego digno ou uma vaga na Universidade Pública, mesmo que tal instituição  também, já tenha aderido ao sistema, por meio das "cotas", como se a cor da pele, a condição social ou uma deficiência física, pudesse tornar uma pessoa intelectualmente inferior a outra.

     E agora, amigo leitor, conseguiu entender as razões que levam nossos professores à psiquiatria, afastando-os de suas atividades?

Rio de Janeiro, outubro de 2012

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Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 22/04/2017
Reeditado em 11/10/2022
Código do texto: T5978557
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