A PROCISSÃO

Mês de Abril, semana santa, Páscoa. Isso me fez lembrar da primeira vez que participei de uma procissão de Domingo de ramos, o domingo que antecede a Semana Santa e que simboliza a entrada de Jesus Cristo montado num burrinho na cidade de Jerusalém.

Morador novo num bairro que ainda conservava algumas características rurais. Oportunidade para fazer coisas que antes eram parte apenas da imaginação. Por que não participar de uma procissão de verdade num lugar tranquilo, com jeitão de cidade do interior?!

Melhor ainda, o ponto de partida da procissão se daria no final da rua onde morava. Era muito cedo, por volta das seis da manhã. Não haveria quase ninguém no caminho até a igreja. Pensei eu!

Aproximei-me meio que timidamente de um grupo de pessoas que estavam próximas a um carro de som. Mais à frente, estava o vigário da igreja em cima de uma mula ou burro, não sei.

A maioria das pessoas era de gente idosa. Um grupo menor de pessoas da meia-idade onde eu me inseria e somente alguns poucos jovens. Mulheres na maioria.

Todos já estavam com o seu ramo de palmeira nas mãos. Menos eu! Tinha que arranjar um! Seguir procissão de domingo de ramos sem um ramo para sacudir durante o trajeto, seria o mesmo de que ir a Roma e não ver o Papa. Onde arranjar um ramo?

Vestia calça jeans e camisa de manga comprida. Traje que considerei apropriado para uma procissão. A manhã estava friazinha e parecia que não esquentaria muito.

O carro de som começou a tocar uma canção religiosa. A procissão já ia começar e eu estava ainda sem o meu ramo de palmeira.

Avistei uma senhora distribuindo alguns ramos. Estava distante de mim talvez uns dez metros. Um tanto envergonhado hesitei em aproximar-me da mulher e pedir um. Quando me decidi ir ao encontro da idosa vi o último ramo sair de suas mãos e ido parar na mão de um senhor que pela idade duvidava que chegasse até o final do cortejo pelo menos com saúde.

Sem o meu ramo, o padre ameaçava dar o comando para o início da procissão. Olhei para o relógio e comecei a ficar apreensivo. Já passava das sete da manhã. A esta hora, o mercadinho já estaria aberto, a banca de jornal, idem. Mais um pouco o açougue levantaria as portas. Ia ter mais gente na rua e o risco de ser visto seguindo a procissão era enorme. Vou desistir! Pensei! Para justificar, tentei colocar a culpa na porcaria do ramo.

Já quase desistindo eis que surge uma outra idosa com uns três raminhos na mão que ainda lhe faltava distribuir. Veio em minha direção com o ramo estendido. Não tinha mais desculpas para não participar do cortejo.

De posse de meu ramo minúsculo, ensaiei alguns discretos acenos com o mesmo. Pratiquei-os sem ninguém perceber ao redor.

Após uns vinte minutos, o séquito começou a andar. O padre em cima da mula ou burro parecia um Dom Quixote liderando um ataque imaginário, pois levantara o braço e com um gesto vigoroso para a frente deu início à procissão.

Voltamos pela rua em que morava. Para minha sorte, minha mulher ainda estava dormindo e não haveria o risco de me surpreender no meio do povaréu. Os vizinhos também não costumavam levantar cedo, somente os caseiros de uma ou outra casa é que àquela hora poderiam estar limpando as calçadas. Mas, como era domingo, as calçadas já haviam sido limpas e varridas no dia anterior. Portanto, era bem provável que conseguiria passar incólume pela minha própria rua.

Após quase um quilômetro de rua, cantando canções sacras, interrompidas a cada vez para a recitação de um Pai Nosso e uma Ave Maria, estávamos chegando à rua principal que nos levaria à igreja.

A rua principal àquela hora já estava bem movimentada. Muita gente que não participava da procissão ficava a nos olhar com piedade cristã como se fôssemos um bando de carolas perdendo uma linda manhã de domingo de sol. Aliás, a linha manhã de sol começava a esquentar mais do que o normal. Já eu começava a transpirar sob a minha camisa de manga comprida fechada até o último botão. O calor já incomodava mais do que o devido. Discretamente quando as pessoas sacudiam os seus ramos, eu aproveitava para sacudir o meu, mais como um abanador do que propriamente um símbolo. Ajudava um pouco, não muito, mas ajudava. Abri mais um botão da camisa, depois outro até liberar a parte superior do peito. Era uma tentativa de abrandar o abafamento daquela manhã dominical.

A procissão havia alcançado o mercadinho. Cada vez mais gente sobre a calçada a nos olhar. E lá ia o padre em cima da mula ou burro liderando um bando de gente velha e suada. Nesta altura o ramo em minha mão, além de abanador, servia-me também como máscara.

Sem exagero, já estávamos há mais de hora andando e parando, cantando e rezando sob um sol inclemente. E, a igreja que não chegava nunca. Cada vez mais gente na calçada nos olhando com cara de espanto ou dó. E, o padre lá em cima, se realizando como cowboy de Cristo!

Eu só pensava na igreja. Em como seria bom chegar àquele oásis de meditação, fé e tranquilidade para descansar do calor abrasivo e recuperar-me do estresse da vergonha.

Finalmente, depois de mais uns trinta minutos entre paradas e recomeços, uma cantoria terrível e quase um terço inteiro rezado, adentramos pelo pátio da igreja. Desconfiei ao ver o estacionamento abarrotado de automóveis. Tinha até guardador. Um não, mas uns três! Ainda de forma otimista tentei pensar de que os carros seriam dos seguidores da procissão que ali deixaram seus veículos ai para facilitar-lhes o regresso quando a missa terminasse.

Que nada! O interior da igreja já estava tomado por outras pessoas. Centenas delas! Não havia mais um espaçozinho sequer nos bancos.

Até para ficar em pé estava apertado. Aquilo era uma verdadeira visão dantesca. O sacrifício não era do Cristo, mas daqueles que seguiram a procissão! O calvário iria continuar lá dentro! Fazer o quê? Em pé fiquei! Esperávamos todos pelo início da missa. Mas, cadê o padre? Temi que ele entrasse na igreja montado em sua mula ou burro. Aí não! Pensei! Seria um sacrilégio! Imagina se o animal depois de tanto tempo se controlando desse vazão ao curso natural de seu intestino?! Acho que o padre cowboy não iria arriscar tanto.

Mas eis que de repente ele adentra a pé pela nave central do templo caminhando lentamente, seguido por uma fila de fiéis das pastorais da paróquia.

Ao final de uns cinco minutos alcançaram o altar. A missa iria começar. Mais um padre e um diácono se acercaram dele e uma dezena de coroinhas. O evento prometia!

Com o joelho já dando sinais de que a dor estava chegando, a coluna incomodando, o ombro machucado latejando e o suor escorrendo pela testa, lá estava eu participando pela primeira vez de uma missa da abertura da semana de Páscoa. Mais canções e canções. Qualquer rito era introduzido por uma música. Cada uma pior do que a outra. Aquelas músicas que não se conhece a letra e a melodia é insossa. Então, eu permaneci olhando para o altar e tentando decorar algum verso, mas impossível pela acústica complicada que a maioria das igrejas possui.

Quase duas horas depois, a missa chegava ao fim. Em sinal de respeito, todos no interior da igreja deveriam aguardar pela saída do sacerdote do adro. Embora estivesse bem próximo à saída, fui obrigado a esperar por quase toda a igreja sair atrás do padre para que eu pudesse sair, também!

Na rua desde seis da manhã, voltei para casa um pouco depois das dez. Cansado, suado, todo dolorido. Minha mulher estava assustada. Não sabia onde eu estava. Eu havia deixado o celular em casa. Não foi preciso grandes explicações de minha parte e ela se contentou com o raminho que lhe dei como lembrança de minha odisseia pascal.

Seguindo a recomendação do padre, daqui a um ano, antes do início do período quaresmal, deveria devolver o ramo à igreja para que o mesmo fosse queimado na Quarta-Feira de Cinzas.

Mas, até lá, o raminho ficaria pendurado na grade da janela do quarto dos fundos para proteção da casa de raios e trovões conforme a avó materna de minha mulher, um dia, a havia aconselhado.