Bombril ou bolinha de gude?

(Inspirado num causo de infância do amigo Ehud.)

A cidade era pequena e, naquele tempo, a gente podia ver os meninos brincando alegremente na rua. Naquele tempo também, os armazéns tinham o nome dos donos e a gente costumava dizer: vai ali no armazém do Zé, do Juca... ou simplesmente "vai lá no Juca".

O menino tinha uns 9 ou 10 anos.

Era levado, "traquina" diria meu avô, mas costumava ser obediente.

- Deco, vai ali na venda do seu Jovino pra mim? - gritou a mãe lá da cozinha.

Deco que olhava da varanda com desinteresse o cachorro fuçando a terra no quintal, sem vontade de ir lá brincar com ele, logo se levantou e foi ao encontro da mãe.

- Comprar o quê, mãe?

- Bombril, meu filho. Tenho que arear a frigideira do torresmo de ontem e queria também ver se limpava o ferro. Ah! Traz vela também, assim limpo o ferro direito.

- No seu Jovino tem vela??

- Claro! É um armazém! Tem tudo!!! - e sorriu

O garoto pensou:

- Bolinha de gude não tem!

E emendou com voz disciplinada, pegando as duas notas da mão da mãe:

- Então é pra trazer bombril e vela, certo? Posso ficar com o troco?

- Isso mesmo, bombril e vela e nada de ficar com troco não senhor, pois tenho que comprar pão pro lanche da tarde.

O menino colocou as duas notas no bolso e saiu andando tranquilo pelo quintal, fez um chamego no cachorro e alcançou o portão que ficava nos fundos. Por ali o caminho era um pouco maior, já que ele tinha que dar a volta na rua, mas como ele não tinha mesmo o que fazer, ia se divertindo olhando "as gentes" pelo caminho.

Ao dobrar a esquina da rua de trás, ele viu de longe os moleques jogando bolinha de gude no campinho. Um sorriso se desenhou em seus lábios e ele até começou a andar mais rápido em direção ao campinho... bolinha de gude era o seu fraco!

Parou ali observando, e Maneco gritou:

- Entra aí, Deco!

- Tô sem boleba nenhuma, Maneco!

- Tem problema não, te arranjo algumas!

- Então tá, tô dentro!

E ali ficou o garoto, com Maneco e os outros meninos, dando peteleco e mais peteleco nas bolinhas de gude e capturando todas elas. Ele era mesmo muito bom naquilo!

No final, estava com os bolsos cheios de bolinhas de gude!!!

Alguns dos meninos, desanimados e sem muitas bolinhas, foram se dispersando e daqui a pouco as mães gritavam por cada um deles para irem pra casa almoçar.

E depois de tanto peteleco, a fome bateu mesmo! Deco tomou o rumo de casa, não sem antes devolver as bolinhas que Maneco lhe cedera.

Chegou em casa todo entusiasmado com suas novas bolinhas de gude!

Entrou pela frente, atravessou a sala e a copa e, ao ver a mãe na cozinha, perguntou:

- E o almoço, mãe, sai ou não sai?

- Uai, menino, cadê o bombril e a vela?

Ele olhou pra ela com susto e fez aquele ar encabulado:

- O bombril? A vela? Não trouxe não... mas olha o tanto de boleba que eu ganhei!

Tirou as bolinhas do bolso e as duas notas estavam emboladas ali junto.

A mãe, já imaginando o desfecho da história, pergunta:

- E não trouxe porquê? Tá em falta no seu Jovino?

E o menino, com certo constrangimento na voz:

- Sei não, mãe. Tudo bem... eu sei sim. Você me enviou com a missão de comprar o bombril... e a vela também, pra limpar o ferro, mas eu me distraí, mãe, e não cumpri a minha missão! E agora? Você me desculpa?

A mãe achou gozado aquele jeito de falar do menino e concluiu:

- É Deco, sua missão não era mesmo jogar bolinha de gude! Mas deixe estar... depois do almoço você vai lá e cumpre a sua missão direitinho. Mas dessa vez vai pela rua da frente, certo?

(Em 23 de abril de 2014)

Marô da Matta Machado
Enviado por Marô da Matta Machado em 06/03/2017
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