metAMORfose

Tomaram a boneca da minha mão: - Isso não é coisa de menino. Acreditei e não questionei. Enquanto via meu tio ninar sua filha no colo. Numa outra ocasião saindo de uma festa de aniversário escolhi os balões cor de rosa para brincar. Mais uma vez tomaram de mim: - Essa cor é de menina. Enquanto vi o meu tio vestido em uma camisa daquela cor. Na escola, ainda era criança, brincando no recreio uma colega me diz: - Tira a mão da cintura, fica parecendo mulher. Ajeitei os meus trejeitos desde então; mas vi um professor cruzar as pernas. Fui chamar um vizinho para lhe dar um recado, quando ele me respondeu: - Engrossa essa voz, tu és homem, porra.

Sempre, sempre me policiando para ser macho. Homem não chora, não demonstra sentimento, não demonstra carinho... é feito máquina, feito fera. Fortaleci a voz e a coragem. Ecoava julgamentos e preconceitos na minha cabeça, e meu coração se estrangulava quando eu me renegava. Eu morria a cada vez que fingia ser quem eu não era. Desbotava como fotografia à mercê do tempo. Dias de sol para mim eram nublados, pois chovia em minha alma. Há quem dissesse que era drama, que era pieguice e caretice. Poesia também não é coisa de homem. Renovei minha fé em mim mesmo e me apeguei à Deus; revelei-me novamente, mas dessa vez sem máscaras. Eu não entendia, eu não podia entender, e nunca entenderei, ninguém vai. Mas eu sou assim e pronto. É como a própria vida: mistério eterno. Porém me amei, me aceitei, e me joguei nesse abismo. A vida toda sendo quem não sou, e agora sigo me despindo. Não vou mais me travestir para agradar plateias. Vou me travestir para ser meu íntimo. E assim sorri por tantas vezes. Feliz, sim:

Tornei-me eu mesma; metamorfose do espírito. Despejei os fardos no chão. Senti-me livre. Voei. Um dia sei que fui só fôlego e pó, como todo mundo. E um dia sei que a isso voltarei, mas não como todo mundo. Eu era verbo que não se conjuga e encarnei. Centelhas divinas em mim também habitam; sentimentos e desejos. Foram minando ao pouco meu fôlego. Eu respirava bravamente, porém. Mulher! E os covardes, hienas que rondam a carniça sempre por aí soltas nessa selva. Sob o céu de lua indiferente ou sol impiedoso seguem cruéis a espera do juízo final.

Um dia, somente por ser quem eu sou me disseram: - Isso não é coisa de homem. E assim me tomaram a vida de vez. Sou apenas fotografia desbotada agora. Apenas pó e verbo. Apenas mais uma...