A tarde em descendência

Faltavam alguns minutos para as quatro da tarde quando deixei meus filhos na festa de aniversário de um amigo. Começar por uma falta é já uma revelação e um testamento. Todo começo é uma falta. A tarde caminhava de uma tal maneira para a simplicidade que não hesitei em parar o carro em frente a uma padaria para comprar pão de sal. Tudo o que eu queria ali era apenas pão de sal.Talvez porque isso de comprar pão não fosse um hábito, talvez por esse progressivo encaminhamento da existência à sua mais complexa simplicidade, um simples pão tornara-se alvo de um inexplicável desejo. Entrei naquele ambiente cheirando a fermento, o que ampliava todas as dimensõs do mundo, num calor ainda maior que o da rua, e colhi dois pães da vitrine que os expunha. Colheita, aqui, é o melhor significado para o que estava acontecendo. Embora um único pão bastasse e o princípio e fim de todas as coisas sagradas seja o uno, arrisquei levar dois, num primeiro desdobramento da unidade. Embalados em papel, carreguei-os com a delicadeza que se deve dedicar aos seres leves, até que a mesa da cozinha pudesse acomodá-los para eu coar um café. Sim, por algum motivo que eu sequer pretenda explicar ou compreender, a tarde pedia pão com manteiga e uma xícarra de café, como tantas vezes o desjejum da infância. Talvez eu quisesse um desjejum originário, sem os acréscimos que a vida imprimiu, entre grãos e derivados. Talvez eu quissesse me esvaziar de mim para ser a versão mais essencialmente verdadeira do meu ser. Toda vez que eu retorno à mesa da minha infância, a vida se torna acessivelmente simples e generosa.Talvez eu quissesse apenas montar na bicicleta e descer em disparada, como o coração, a Risoleta Lima rumo à padaria mais próxima, só para passar na porta da casa do meu primeiro namorado e arriscar vê-lo na travessia de meus olhos pela janela. Eu não sabia, mas começava ali essa história de atravessamentos. Um roteiro de vida e morte.Talvez eu quisesse o sabor amargo do café no encontro entre língua e olfato, acompanhado de uma presença que não roubasse a cena, como acontece nos cafés com croissants e madeleines. Talvez eu quisesse o toque animalizado da manteiga deslizando pela garganta e o café com pão fosse apenas um pretexto. O texto seria um porvir. Talvez. É preciso sempre dizer talvez. Tanto quanto navegar é preciso. Ao passo do viver, esse misterioso desejo de um café acompanhado de pão com manteiga, numa tarde de sábado em descendência, para, talvez quem sabe, provar que a vida é simples.