AUSÊNCIA

E foi-se o Dantas...

Suportou o raio, sobreviveu ao licor de jenipapo e até a um naufrágio na juventude onde ficou três dias flutuando, agarrado a alguma coisa. Mas às 8 da manhã de cinco de janeiro de 2001, seu coração falhou de vez.

Estava plenamente confiante nos esculápios. Afinal, ponte de safena já era rotina. Fez planos para voltar ao seu atelier antigo, já que não poderia mais subir escadas. Brincou com as enfermeiras, dizendo que ia fugir do apartamento para festejar o ano novo. Fez graça de sua sorte, quando no quarto do hospital desenhou sua própria caricatura, apenas com o camisolão, antes que lhe depilassem para a cirurgia.

Suportou bravamente a operação de 14 às 23 horas. Teve a primeira parada cardíaca de madrugada, quando os médicos abriram-no novamente, ai mesmo na UTI, e foi ressuscitado, literalmente, com o peito aberto e o coração nas mãos, mas às oito da manhã não deu mais pra segurar...

É impressionante como, em nossa cultura, ainda não nos acostumamos com a morte. Sabemos que ela virá, mais cedo ou mais tarde, para todos nós, mas ainda não nos acostumamos com ela.

Vendo-o ali, deitado, com a face serena e um meio sorriso nos lábios, as mãos cruzadas no peito, as unhas longas e bem feitas na direita e curtas na esquerda, como se ainda prontas para tocar mais uma vez o violão, pensei nas duas possibilidades. Ou acaba tudo quando vamos, ou as sensações continuam mesmo que de forma diferente, e nosso sentimento, pensamento, alma ou como quer que se chame ainda fica em algum lugar, já que não tem mais corpo para morar.

Quase todos acreditam na última possibilidade, mesmo que de diferentes formas e sendo assim, naquela hora, tenho certeza que ele preferiria que estivéssemos serenos e talvez, usando a música, que sempre o acompanhou, para alegrarmos seu último contato de corpo inerte e pensamento vivo.

Dantas, tu continuas vivo na gente, nos teus amigos, nos teus filhos presentes ou ausentes, nas tuas canções, no toque do teu violão que nunca vai se apagar de nossa memória.

Quando o Gervásio não conseguiu aceitar o convite do teu amigo da Grande Loja Maçônica, onde ficaste alojado naquele último dia, para tocar algo no violão, pensei que quando chegasse a minha vez, como seria bom se tivesse alguém tocando e cantando no último contato. Cheguei a falar para os companheiros da minha vontade, mas já é quase certo que nossa cultura e a emoção latina não vai deixar. Felizmente o Constantino rodou o CD com a Danthiana no teu velório. Ainda bem que disco não chora, mas teus dedos, nos acordes gravados, choraram conosco tua partida.

Hoje te encontras com o Pepê e o Edyr e podes dizer pra eles que não vamos deixar morrer o Clube do Camelo, que criaste e que enquanto um de nós viver vai continuar vivendo. Vamos tentar buscar novos Camelos e dromedários e resgatar os que ficaram no caminho.

Não chegaste a ver as crônicas que eu e o Eduardo estávamos escrevendo sobre o nosso Clube. A doença repentina e a morte não deixaram, mas conta pros dois que vou continuar, pois vocês me incentivaram a fazê-lo, como me incentivaram a começar a compor, o Edyr e o Pepê com o exemplo e tu com a tua “Ausência”, a primeira letra de música que fiz, dez anos antes da tua viagem definitiva, no longínquo 1990, na melodia da tua valsa.

A “Ausência” diz bem o que a gente sente:

AUSÊNCIA

(Raimundo Dantas e Almir Morisson)

Eu sei que tu não estás

Mas eu te sinto aqui

No som da minha voz

Nos versos que escrevi

Na planta que cresceu

No ensaio da canção

Vivendo em toda minha inspiração.

E vendo entrelaçar

Tua ausência com meu ser

Não sei por que razão

A dor de não te ver

Pois sinto ser feliz

Feliz por teu querer

Sentindo que estás sempre em mim

Sabendo que estás sempre em mim.

Consegui fazer, como prometido, uma letra que falasse de saudade, sem escrever a palavra saudade. A gravação pode ser encontrada em:

http://www.recantodasletras.com.br/audios/cancoes/73379