O diário da minha avó

Santo Deus! Que cenário paradisíaco. Eu não morrera e acordara no céu. Entrara no céu, abrindo aquele livro.

Que narrativa! Impressionou-me a descrição perfeita, quase real, da exuberância das flores, do vermelho, rosa-choques, do branco e dos matizes das nove-horas, todas abertas. Na certa tingiriam a visão mais torpe das mentes humanas.

Vi pétalas escancaradas, abelhas negras colhendo néctar. Todas festivas.

Vi borboletas saltitando, deixando rastros alaranjados em forma de zig-zag. As palavras ali valiam mais do que mil imagens. Como eu, por tanto tempo, nunca percebera movimentos tão mágicos fora do ambiente imaginário dos livros, nos jardins da realidade?

Por um instante voltei ao meu verdadeiro mundo e avistei na copa do sapotizeiro um bem-te-vi que cantou aos quatro cantos:

_ Bem-te-vi! Bem-te-vi!

Outrora eu o assustaria. Como um menino torto, eu arremessaria pedras de um estilingue para amedrontá-lo. Minha falecida avó diria: “meninos tem o cão nos couros”. E com esse devaneio lembrei das surras do antepassado. Fez-me lembrar dela. Às vezes eu a achava meio cruel, na sua forma de falar:

_ “Sai daqui, sua peste!. Já comeu o diabo-a-quatro e ainda não está satisfeito”.

Parecia a tia Polly ralhando com o Tom Sawyer: “_ Que diabo de rapaz! Eu nunca hei-de aprender?”.

Certa vez ela aplicou uma inédita surra no meu primo só porque ele arremessou uma bola que lhe arrancou da boca o cachimbo feito de barro e caniço. Foi buscá-lo debaixo da saia da mãe que estava costurando à máquina. Fiquei eu, minha tia e meu irmão assistindo à coça sem nada poder fazer.

Mas agora, vendo aquele caderno, tudo era mágico. Por que motivo, agora, tão mole estava o meu coração?

Eu estava encantado com o que via em minhas mãos. Era como se estivesse vendo além do caderno. Dentro dele e com os olhos dela. E não era com esses olhos que a terra há de comer, como ela costumava dizer. Era com a alma. Eu estava vendo com a alma o que outra alma vira um dia e retratara em palavras tão doces. “O canto dos pássaros, a maciez do vento, o farfalhar das águas tranquilas, a dança das folhas”… a vida tão bela.

Encostei-me no espaldar da cadeira antiga que fora dela, fazendo-a inclinar para trás. Percebi o quanto era macia e que balançava aos comandos do meu tronco.

Aquilo me fez sonolento. Uma brisa leve soprou minha testa. Fechei meus olhos e percebi meus braços atenuados, minhas mãos relaxadas, minha respiração compassada.

Ouvi, já não com meus ouvidos, o pássaro cantar novamente:

_ Bem-te-vi! Bem-te-vi!

Meus braços declinaram, minhas mãos soltaram o caderno e com ele o cenário mágico que contemplava.

Adormeci com as folhas compactadas sobre o meu peito. E era como se aquele caderno também adormecesse, me fazendo companhia no sonho. No sonho que tirara dele. Das coisas que vira nele.

Ainda dormindo pude perceber que eu tinha um sorriso. Eu estava sonhando com ele sobre o meu peito. O caderno que me pintara um quadro tão mágico, tão lindo. Era inacreditável. Tão diferente do jeito rude daquela senhora.

Agora dormiam, eu e aquele caderno sobre o meu peito. O diário da minha avó.

José Freire Pontes
Enviado por José Freire Pontes em 27/01/2017
Reeditado em 21/05/2023
Código do texto: T5894857
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