O CONTO DO VIGÁRIO
O Eduardo estava eufórico. Foi numa fase do Clube do Camelo que a produção era tanta que cada um queria mostrar suas músicas. Eu, o Firmino e o Gervásio, já havíamos feito alguns shows em teatro, exibindo nossos dotes de compositor, e o Eduardo iria para o seu segundo.
Tínhamos facilidade em compor músicas e exibi-las em shows, contudo, nosso maior problema, que até hoje persiste, era vender os ingressos. Como a maioria dos membros do Clube do Camelo pertence, ou pertenceu, a Universidade Federal do Pará, nosso maior público é de lá, pois é lá que o Firmino e o Gervásio conseguem, a muito custo, vender a maioria dos ingressos. Assim conseguíamos sempre um público entre 100 e 300 pessoas, o que é muito bom para um grupo amador.
Naquela altura o Eduardo estava fazendo um trabalho voluntário para a igreja do conjunto habitacional Bela Manoela, onde mora. O pároco da igreja, entusiasmado com a produção do Eduardo que, apesar de sua deficiência física, demonstrava grande eficiência nas tarefas que se propunha fazer, empenhou-se em ajudá-lo no show. Pediu duzentos ingressos e comprometeu-se a passar para seus paroquianos. Não imaginava o coitado a dificuldade de apoio do público a eventos culturais em nossa cidade.
A bem da verdade, soube depois que o padre era de uma paróquia famosa, conhecida por todos em Belém, que fazia novena toda sexta feira e que apresentava um programa de rádio na mesma emissora onde o Eduardo trabalhava e que tinha sido introduzido ao compositor pelo Firmino.
Assim ou assado, o certo é que o Eduardo chamou os camelos e disse:
– Vamos empenhar-nos nos ensaios e na qualidade do show. Não adianta perder tempo em passar ingressos, pois o padre se encarregará disso.
O Gervásio esforçou-se ao máximo, fez arranjos dignos dos melhores músicos, preparou as partituras com o maior esmero e escolheu primorosamente o repertório com as melhores músicas do Dudu. Músicos de fora foram convidados para aprimorar a qualidade.
No dia do show bateu a primeira campa com cinco pessoas na platéia. O Eduardo já estava preocupado e inquieto. Culpava a chuva.
– Choveu um pouco. Espera pra bater a segunda. O pessoal já vai chegar.
Quinze minutos e nada! Bate assim mesmo.
Na terceira batida tinha chegado mais uma meia dúzia de gatos pingados. Literalmente (da chuva). A verdade é que começamos, em respeito aos que tinham vindo, com mais gente no palco do que na platéia. Nem o padre veio!
O show foi muito bom. Profissionalmente perfeito.
Como é praxe no Clube do Camelo fiz uma letra alusiva ao fato. O Gervásio musicou e ainda arrematou com o “AMÉM!!!!!” final.
O XOTE DO VIGÁRIO
(Gervásio Cavalcante e Almir Morisson)
O vigário anunciou
E o camelo acreditou
Que mais de mil fieis comprariam
Os ingressos do seu show
O Firmo pensou pra que
Vou cansar o meu latim
Aqui na Universidade
E o Tobias concordou
Se a paróquia do seu padre
Já cobre toda a cidade?
O caso é que o reverendo
Merecia confiança
Já que toda madrugada
No seu programa de rádio
Divulgava a camelada
Com fé e perseverança
O vigário .........
Enquanto a turma ensaiava
Pinhos, baixo e bateria
O pároco se esforçava
Todo sermão repetia
Ajudar a camelada
É ajudar virgem Maria
E o camelo empolgado
Os ensaios assistia
Dava teco no arranjo
Mexia na harmonia
Até que na quarta feira
Chegou o tal grande dia
O vigário........
Eduardo de cartola
Colete terno e gravata
Imaginava que a renda
O faria um magnata
Alugou até um carro
Aproveitando a mamata
O Maraca de Lombardi
Escondido na coxia
Lendo trechos de poesia
Entre falas e uísque
Pensava todo contente
Na multidão que viria
(solo)
Na terceira badalada
Jogou uísque na goela
Quando se abriram as cortinas
Deu uma bruta cefaléia
Tinha mais gente no palco
Que público na platéia
O camelo que fungava
Com suspiro angustiado
Pegou forte o microfone
E falou todo empolgado
Apesar de pouca gente
Será um show abençoado
Os fieis foram infiéis
Quem mandou seres otário
Não cansamos de dizer
Que este foi literalmente
Mais um conto do vigário.
AMÉM!!!!!
O Eduardo até que ficou conformado com o padre. Afinal havia presenciado seus esforços e se os fiéis não vieram não fora sua culpa. Ficou muito zangado foi com a letra que fiz chamando-o de otário. Reclamou de que durante o show eu ficava ensaiando outras coisas no camarim. É que eu iria ter outro show dos “Namorados tropicais”, um conjunto vocal do qual eu pertencia e íamos nos apresentar dentro de uma semana no mesmo teatro. Como eu só cantava algumas músicas no show do Eduardo, aproveitava o intervalo para discutir o repertório do outro show com o trio dos “Namorados”.
Enfim, inconformado o Edu produziu outra letra respondendo à minha, a qual musiquei, para mostrar que não havia nenhum ressentimento.
Até que ficou um baiãozinho legal.
CAMELO EM CARTAZ
(Almir Morisson e Eduardo Queiroz)
Otário é quem chama
A boa intenção do rapaz
Que no seu show só queria
Dar ao camelo cartaz
Mais ninguém vendeu ingresso
Só o Almir e o Constantão
Desde que o Dantas morreu
Virou esculhambação
Não se ensaia nem reúne
Cada qual busca seu lado
Se o vexame não nos une
Nosso dia está contado
Ver se pode em pleno show
Um ensaio paralelo
Com três chatos que horror
Torrando o saco do velho
Concorda fui patolino
Fiquei com a data que sobrou
Tomei pilha do Firmino
Em quanto alguém passeava em Moscou
Nossa Senhora perdoa tanta heresia
De quem do vigário muito queria
Rima de palpite infeliz
Que não sabe onde enfia o nariz.
Reapresentamos o show no mês seguinte, agora com nosso público cativo, e incluímos as duas músicas para contar a história. Para esse show, já foram mais de cem pessoas.
No show “Arraiá do Camelo”, em junho de 2011, contamos novamente a história, mostrando as músicas, agora cantadas pelo Firmino que, purista como sempre no vernáculo, cantou “Nossos dias estão contados” em vez de “Nosso dia está contado” como o Edu tinha feito, usando da licença poética para poder rimar contado com lado. O público gostou do acontecido e riu muito.
Vejam no youtube se a gente não é descendente de nordestino...
https://youtu.be/E6tWx8jSos0
https://youtu.be/6hD2MplQnzo
P.S. O áudio das músicas citadas nesta crônica encontra-se no recanto das letras. http://www.recantodasletras.com.br/audios/cancoes/73361
http://www.recantodasletras.com.br/audios/cancoes/73353