A CARROÇA, O CAPIM E A MENINA

A CARROÇA, O CAPIM E A MENINA

Por Clayton Rêgo Mendes

Como faço de costume nos dias de calor (e de frio também), pela hora do almoço de um domingo qualquer estava eu com um amigo escutando Elis Regina e olhando o cotidiano me contar novamente as mesmas coisas, saciando a minha sede com uma cerveja em baixíssima temperatura. Por mais que a conversa variasse a sua tonalidade, as mesmas pessoas passavam, os mesmos “bom dia”, as mesmas cores e matizes me davam a certeza da mesmice preguiçosa daquele domingo. Acontece que as crônicas que escrevo são em verdade transliterações, pois elas já estão escritas nas manhãs, nas tardes e nas noites, leio apenas antes de todos. Pois então.

Entre uma troça e outra, entre uma golada e outra reparamos no meio da praça uma carroça, um cavalo e uma criança. A carroça usada para carregar o carroceiro ao mesmo tempo que esperava a sua carga viva regressar, servia como grilhão para o pobre animal, que a essa altura do dia, cansado carregava além do carroceiro e da carroça, a sua honra. Ué, mas cavalos lá possuem honra? Pois acreditem... parecia que somente ela é que não deixava aquele quadrúpedes desabar ao solo. Paralelo a isso uma criança sem nenhum compromisso com o animal brincava tudo o que lhe permitia a sua tenra idade. Sabe-se lá o que pensava aquela criança naquela praça, pois as crianças não pensam o mundo como nós adultos, e graças a Deus por isso!!! Uma criança nunca vê um tijolo como um tijolo ou um monte de terra como um monte de terra. Nossos tijolos são para elas castelos e casas, nossos montes de terra podem transforma-se em deliciosos bolinhos de terra molhada . Vivem a vida numa sintonia diferente da nossa. Fato é, que aqueles personagens independentes, como numa pericórese, de repente entrelaçaram seus destinos. A menininha apesar de com certeza não saber fazer a leitura do semblante de eqüinos, de com certeza não saber o dialeto dos bichos e de com certeza não ter a menor responsabilidade com aquela iminente necessidade, abandonou seu faz-de-conta, suas brincadeiras e sua boneca, procurou um recipiente qualquer, foi no canteiro com mato alto, arrancou o capim com suas mãozinhas, encheu o prato descartável que conseguira, quebrou todas as regras da coerência e do medo de ser mal recebida ou interpretada e passou piedosamente a alimentar o cavalo. O animal desesperado devorava todo o capim que sua boca permitia devorar até o fim. No entanto, mesmo que acabasse o capim do prato, havia mais capim no canteiro, havia mais fome no estômago do cavalo e havia muito mais amor no coração da menininha. Aquele ciclo de carinho franciscanamente alongou-se por alguns minutos ao ponto de arrancar-me da mesa e do meu copo gelado de cerveja. Emocionado fui com o celular tentar registrar eternamente o efêmero.

O risco de possíveis mordidas e coices não frearam o ímpeto do amor. É claro que não estou aconselhando ninguém a soltar suas crianças nas ruas para alimentar cavalos, mas estou aconselhando sim que aprendamos com as crianças que apesar dos riscos vale à pena fazer o bem, vale à pena socorrer o necessitado, que apesar de não ter provocado a fome e a sede, o amor de Deus nos comissiona a dar pão e água, a dar carinho e amor, a dar atenção e cuidado. Não por acaso elas tiveram acesso direto a Jesus.

Aquela menina me deu uma lição. Ensinou-me que é possível vivermos todos no seu mundo encantado. Um mundo onde as pessoas não passam fome, onde a religiosidade não tem força para ficar entre dois seres humanos, onde o igual e o diferente caminham lado a lado e onde o amor de Deus reina nos corações.

Talvez valha a pena repensar de que forma estamos tratando as nossas relações.

Relações humanas, relações existenciais, relação com a natureza, relação com os animais, relação com a vida... e a nossa relação com o Crucificado.

Que o Deus dos cavalos, das carroças e das menininhas nos abençoe.

Clayton Mendes
Enviado por Clayton Mendes em 22/01/2017
Código do texto: T5889914
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