Linda Manhã Para Poucos

Um dia desses decidi ir a pé comprar umas coisas para o café da manhã num mercadinho que fica a duas quadras de minha casa. Era uma linda manhã ensolarada, daquelas que parecem tornar tudo ao redor mais bonito, mais vivo. O feio ainda está ali, o contraditório e o desigual também, mas amarelados alegremente pela chama da manhã, parecem pendentes por ora - tudo é belo. Aprontei-me e saí de casa.

Caminhei tranquila, leve, cantarolando qualquer coisa da qual não me recordo, mas que mostrava a qualquer um que o pé direito fora o primeiro a tocar o chão naquele lindo dia. Chegando ao mercadinho, já na calçada, delirei ao cheiro delicioso das hortaliças frescas que estavam expostas na calçada em caixas de madeira apoiadas na parede da entrada. Folhagens molhadas como que pelo orvalho, aquilo parecia precisar estar ali, tudo parecia perfeito para aquela manhã.

Entrei no mercadinho - o Mercadinho do Alemão, já ia me esquecendo de citar - e, ainda na porta, cruzei com algumas colegas do grupo da terceira idade do qual faço parte. Cumprimentei as meninas, falamos rapidamente sobre nossa última viagem para o Rio, relembramos algo específico e reagimos a isso com uma boa e calorosa gargalhada, que acabou por separar silabicamente minha saudação:

- Te-nha-um-bom-dia-vo-cês-tam-bém-que-ri-das!

Fui, então, em busca de alguns produtos para o meu café da manhã. Primeiro o pão e os frios na padaria aos fundos do mercadinho - por sorte não havia fila, como eu disse, tudo perfeito naquela manhã. Depois fui em busca de alguns doces, avistei alguns potes de doce de leite no corredor do meio (são poucos na verdade, é um mercadinho mesmo) e parti para lá. Garimpei por ali, comparei preços - eu não tinha pressa -, até que uma cena me fez cessar de repente: uma mulher estava escondendo sob suas calças, de modo muito discreto, dois pacotes de macarrão instantâneo. A moça - sim, "moça", eu lhe daria 25 - parecia nervosa, mas não percebeu que eu a vi escondendo os pacotes. Ruborizei.

Aquilo me deixou extremamente mal. Imediatamente pensei em reagir de alguma forma, mas o nervosismo me deixou literalmente atordoada e sem reação. Contagiada pelo agito que tomara conta do país naqueles dias em resposta à má conduta de nossos políticos, especialmente à do contingente ligado ao petrólão, eu havia declarado tolerância zero a todo e qualquer tipo de ato improbo sobre o qual tomasse conhecimento. Respirei fundo e finalmente tomei uma iniciativa: rondá-la! O máximo que eu pudesse! Até que me viesse coragem suficiente para dizer a ela o quanto aquilo me indignava, que seu ato nada mais era que um exemplo típico de uma característica que parece estar incrustada em nossa gente: a tendência a trilhar o caminho mais fácil. Malandragem! Corrupção! Queria dizer a ela que isso é justamente o que se vê na conduta de homens que deveriam nos representar e administrar com honestidade a riqueza gerada pelo suor de nosso trabalho! Ouvi atentamente a tudo isso em minha mente, sim, eu disse tudo isso a mim mesma e me convenci. Ora, estava certa, era pouco, mas era roubo!

Pois bem, segui a malandra por mais dois corredores, ela, no entanto, não me notava, parecia agir naturalmente, com a exceção de uma visível preocupação com as horas. A todo instante as checava num "smart phone", o qual, presumi, só poderia ser mais um produto de seus atos ilícitos. Num dado momento, ela parou, contou algumas moedas e pegou na prateleira um suco de pêssego de envelope, mas este ela não escondeu. Aquele seria o seu modo de disfarçar sua entrada no mercadinho - julguei.

Ela então olhou para os lados, inclusive para mim, ao que eu soube disfarçar muito bem, esquivando o olhar rapidamente - ruborizei de novo. Caminhou em direção ao caixa. Segui-a até lá, fiquei logo atrás e a observei pagar pelo único produto que levaria. Meu coração estava acelerado, senti muita raiva de mim mesma por não ser capaz de expressar toda aquela indignação, por não a entregar de uma vez ao funcionário do caixa. Tudo bem, eu pensava, parecia ser pouco, mas era errado, e como eu disse: eu estava muito contagiada pela onda do momento.

Paguei pelas minhas compras. Nem sabia se havia comprado tudo o que eu precisava. Saí do estabelecimento sem ao menos desejar um bom dia ao caixa - a manhã já não era assim tão linda! Já na calçada do mercadinho, decidi agir, de peito estufado, orgulhosa de minha índole inquestionável. Ah, a minha índole. Quão limpa e ímpar, agora mais ainda uma vez diante daquele ato asqueroso. Esta não só me permitia julgar, como me obrigava a lutar contra aquilo de uma vez por todas. Fora assim há alguns dias, este meu caráter excelso me fizera juntar-me em uníssono com todos no "Fora Dilma!" e "Fora PT!”. Quem não sente o salivar do prazer em ser seleto, separado, limpo em contraste com o imundo?

Avistei a sem-vergonha virando a esquina com o celular no ouvido. Fui ao seu encontro para lhe falar tudo quanto ensaiara até ali, em seguida, planejei, grito aos funcionários do Alemão e pronto! Pois bem, decidida, já ao encontro da malandra, caminhei firme, ela já havia dobrado a esquina quando a recuperei de vista. Neste momento, porém, tive de parar imediatamente. Eu fui surpreendida. Novamente surpreendida; do mesmo modo quando a vi pegando os dois pacotes de macarrão, só que dessa vez, por vê-la chorando ao telefone - preciso dizer que ruborizei?

Resolvi esperar um pouco mais antes de agir, mas agora sem tanta certeza de levar o plano a cabo. Escondi-me atrás da parede da venda onde a esquina se dobra de modo a ouvi-la e vê-la sem que ela me notasse ali. No começo parecia tudo sem sentido, quiçá mais pelo fato de meu coração parecer pulsar em meus ouvidos do que pelo conjunto do que via e ouvia.

O coração acalmou e a conversa principiou a ficar mais clara e as coisas começaram a fazer mais sentido: ela conversava com o marido, chorava aos soluços, mas era um choro de alívio. A mulher dizia a ele o quanto se sentia grata a Deus por aquela ligação.

- Homem, foi Deus que te fez ligar. Foi ele também que tocou no coração de seu Toninho em lhe pagar pelo serviço.

Seu choro agora aumentava, os soluços lhe faziam contrair-se, como que comprimindo-se em si mesma. Autopiedade? Vergonha? Pequeneza? Talvez tudo isso. Ela prosseguiu:

- Eu deixei a Julinha em casa mais a Juliana. Não sei qual das duas desfalece primeiro de fome, homem! - Contava, fungando e esfregando as mangas da blusa nos olhos encharcados. - A Julinha tava apontando a mãozinha pra boquinha, resmungando baixinho que queria "papá".

Continuou a conversar com o marido, descrevendo sua saída em disparada para o Mercadinho do Alemão, nem mesmo os cabelos penteara, tampouco os pés calçara - o que eu só percebi enquanto ela contava.

- Eu fiz coisa errada, homem. Cê sabe que jamais que eu faria isso, mas quem tem juízo quando vê um anjinho chorar de fome?

É claro que eu já ligara os ponto a essa altura, caro(a) leitor(a). Ruborizei mais do que das outras vezes, e era devida tamanha vergonha.

- A Julinha tá rolando no berço, pedindo comida. Aí eu vim aqui no Alemão e peguei dois miojo, Bruno. - Confessou ao esposo.

- Eu tava a ponto de ficar louca, homem, por favor, me perdoa vem correndo pra cá! Traga o dinheiro! Venha me ajudar! Deus ouviu minha oração, porque Ele sabe que sou honesta. - Caiu finalmente em choro quase que lúgubre. Apoiou-se na parede e lentamente desceu ao chão até se ajoelhar. Confusa, alternando entre agradecimentos ao Divino e pedidos de desculpas, justificativas, parecia deveras ter certeza da interlocução.

Logo o esposo chegou. Abraçaram-se e choraram. Ele a ajudou a levantar, encarou-a de perto, encostou, testa com testa, e prometeu que logo tudo cessaria:

- Eu nunca mais que vou deixar minha família chegar nesse ponto. - Ela assentiu com fé, fé esta que inundava seu olhar e alargava um sorriso terno. Ela o abraçou mais forte, abraço de quem confia.

Os dois então caminharam em direção ao interior do mercadinho. Abaixei a cabeça em desdouro quando passaram por mim. Rezei para que não notassem minha incompreensível cara de culpa, vergonha e tristeza. Eram tamanhas que julguei transparecerem a qualquer um.

Alguns minutos se passaram, e eu percebi que tudo acabara bem com o dono do mercadinho. O Alemão parecia emocionado ao comentar o ocorrido com um funcionário que o acompanhava até a calçada. E eu fiquei ali por um tempo, enxugando as lágrimas, tentando digerir tudo aquilo de uma vez. Lágrimas e pensamentos, tristeza e vergonha. Demorei para decidir sobre o que fazer. A beleza daquela manhã já me passava despercebida.

Pensei talvez em voltar ao mercadinho para procurar por mais alguns ingredientes que me pareciam agora faltar para aquele meu café da manhã. Calculei mentalmente e temi que meu dinheiro não fosse suficiente para comprar mais algumas coisas: quem sabe alguns gramas de empatia, algumas fatias de amor, talvez um pacote de humanidade... Afinal, só aquilo que eu carregava em minhas sacolas era muito pouco.

Um heterônimo sem nome

Por Luis Felipe Souza

Buri, São Paulo, julho de 2016

Luis Felipe Souza
Enviado por Luis Felipe Souza em 17/01/2017
Reeditado em 08/04/2020
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