O jovem Ezequiel...

     Dia destes estava entrando no Supermercado “Point do Momento” com minha filha, quando me deparei com uma cena triste, que embora já tenha visto muitas vezes, ainda não me acostumei: O jovem Ezequiel, menino que vi crescer, estava mais uma vez sentado na calçada pedindo moedas. Estas eram jogadas por alguns transeuntes mais solidários que, apressados pela ditadura do relógio, cumpriam seu dever cristão de ajudar o próximo para, dessa forma, ganharem seus créditos no céu.     

     Parei ao seu lado, peguei uma moeda e lhe dei, não sem antes passar um pequeno sermão, que sempre acreditei valer mais do que o dinheiro, por demonstrar preocupação com o ser humano existente atrás do maltrapilho sentado na calçada. Disse-lhe que não usasse o dinheiro para comprar drogas, e ele apenas riu, perguntando sobre minha mãe, e lembrando-se do meu pai, que falecera logo após o dele. Mais uma vez, estabelecíamos sintonia, através da lembrança de momentos vividos com pessoas amadas, tão importantes em nossas vidas.

     Emocionou-me o fato dele se lembrar de Suzano, meu saudoso herói, que ainda hoje é motivo de muitas risadas e lindas lembranças. Sua passagem pela Terra e por nossas vidas foi, sem dúvidas, muito divertida, nos brindando com grandes exemplos de virtude. E nessa viagem de lembranças, recordei-me do avô de Ezequiel, o velho Batista, que com seu cachimbo num canto da boca ou seu bom cigarro de palha, ficava sentado num tronco em frente à sua casa, na Rua Santa Cruz, apreciando o movimento, todos os dias, no finalzinho da tarde. Existia certo mistério em volta daquele senhor. Muitos diziam que era um lobisomem. Se era, não descobri... Sem dizer que o que o levou para o outro lado foi uma doença ingrata, que o matou aos poucos, e não uma bala de prata.

     Entrei no supermercado pensando nisso, fiz minhas compras e sai. Quando estava me aproximando de Ezequiel novamente, uma cena me chamou a atenção. Um ex-aluno, que atualmente trabalha neste supermercado, estava praticamente expulsando Ezequiel dali, ameaçando chamar a polícia se ele não saísse, usando de palavras duras e fortes, dizendo que a presença dele estava atrapalhando e incomodando as pessoas.

     Como estava com minha filha, resolvi não intervir, e baixando os olhos, apenas ouvi as colocações desrespeitosas que meu ex-aluno proferia contra o jovem Ezequiel. Neste instante, senti-me envergonhado por dois motivos. Primeiramente, por não fazer nada quando, com certeza, poderia ter feito. Segundo, por ter falhado como educador, pois me recordei das vezes em que procurei mostrar a esse ex-aluno nas salas, corredores e pátios da Escola Monsenhor Seckler, a importância do respeito e da solidariedade, da dignidade e do caráter, da forma como podemos, através da educação e do bom tratamento, tornar a vida das pessoas muito melhor. O que eu via agora era alguém que acabou se lapidando pela intransigência mórbida da nossa sociedade excludente, que não olha para as pessoas tentando ver além, e dessa forma, julga, sentencia e humilha.

     Ezequiel levantou-se e saiu dali reclamando, querendo saber quem inventou essa coisa de não poder ficar sentado numa calçada. E foi então que me lembrei de uma ocasião em que o chamei na casa de minha mãe e, mostrei-lhe minha pequena, mas sortida, biblioteca. Ele se maravilhava, folheando os livros e descobrindo, através das muitas figuras, o mundo onde realmente gostaria de viver. Um mundo bem diferente daquele que vivia, onde a miséria e a completa falta de recursos faziam com que sua mãe selecionasse quem dos irmãos iria almoçar naquele dia. Um mundo onde a agressão, o álcool e as drogas eram companheiros inseparáveis na luta diária para sobreviver. Um mundo onde havia lixo, sujeira, frio e ausência de praticamente tudo que qualquer criança em tenra idade merece ter.

     Seus olhinhos vivos passeavam pelas gravuras, como quem se espanta com um brinquedo novo, aquele que nunca veio nem mesmo no Natal. E eu, parado na porta de entrada da casa de Dona Lourdes, apenas observava seu espanto e admiração por algo tão pequeno e insignificante para a grande maioria das pessoas. O olhar de Ezequiel falava muito, e dizia que o mundo era bonito, apesar de tudo. Afinal, era o olhar de uma criança, que enxerga tudo com lentes coloridas.

     Hoje, aquela criança não existe mais. O que sobrou dela, a sociedade condena, julga e humilha. Mesmo assim, vez ou outra, vejo Ezequiel sorrindo e me pergunto: Que motivos ele tem pra sorrir? Sinceramente não sei... Por muito menos do que ele passa, eu me desespero! E dessa forma fico a pensar: Será que um dia conseguiremos colocar em prática a verdadeira solidariedade, aquela tão pregada nas longas missas da matriz ou nos templos evangélicos de nossa cidade, onde as pessoas se confraternizam como “irmãos”, contanto que estejam bem limpos e asseados?

     Pois é! O mundo em que vivemos é esse, e eu não poderia esperar nada diferente... Principalmente por saber que no fundo, cada um de nós carrega um Ezequiel dentro de si. Seja na amargura de uma lembrança triste, na dor de uma derrota ocasional ou na lágrima de uma mágoa mal resolvida. Nossas carências são nossas maiores provas, e nestas, há muito não conseguimos média para aprovação e superação.