O Meio Feliz...
     
     Dia destes, caminhando pelo centro da cidade, lembrei-me de um velho conhecido que não via já há alguns anos: O bom e sorridente Tião. Consumidor voraz de livros, o velho Tião tinha frases prontas para tudo, colecionadas ao longo de muitos anos, debruçado sobre a mesa da biblioteca municipal, sob os olhares atentos de pessoas curiosas em saber o que aquela figura estranha fazia ali praticamente todos os dias.

     Chegava logo cedo para aproveitar melhor o dia, e ficava muitas horas a fio com seu caderninho encardido escrevendo frases que encontrava em muitos livros de pensadores e filósofos. Desfilava por entre grandes mestres do pensamento Universal, indo de pré-socráticos como Tales e Anaxímenes à filosofia contemporânea de Martin Heidegger, Theodor Adorno, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, entre outros.

     Ninguém entendia o que aquela pessoa simples fazia todos os dias naquela biblioteca. Apenas olhares mais atentos conseguiam perceber que o velho Tião nem parava para almoçar, ou seja, ficava praticamente o dia todo sem comer absolutamente nada. Alimentava o espírito, a alma, esquecendo-se quase por completo do corpo físico.

     Essa situação criou uma debilidade que muitas vezes o levou para o hospital, e foi, numa dessas ocasiões que o conheci, há alguns anos. Acometido de uma crise renal insuportável, tive que ficar algumas horas tomando soro e rezando para que aquela dor terrível passasse, quando notei aquela figura na cama ao lado com um livro aberto, alheio à tudo o que acontecia à sua volta. Parecia estar desconectado desse mundo, viajando no “Mundo das Idéias” de Platão ou programando uma volta às origens, na célebre obra prima de Thoreau, “Walden” ou “A vida nos bosques”.

     Fiquei observando-o atentamente, quando de súbito, sem tirar os olhos das páginas, falou-me calmamente: “- Perdeu alguma coisa, amigo?”. Fiquei constrangido, mas respondi de pronto: “- Não, mas é curioso observar que desde que cheguei a este quarto você ainda não parou de ler nem um minuto!”. Ele sorriu, fechou o livro e olhou pra mim com serenidade, dizendo: “- Ora, o que mais existe para se fazer neste mundo quando não temos casa, amigos e muitas vezes nem mesmo o que comer?”. Neste momento, um nó na garganta me fez engasgar, e tive que fazer muita força para não chorar! Fiquei sem ação, olhando-o com piedade e admiração.

     Não sabia ao certo o que pensar naquele momento, e palavras me faltaram. Baixei os olhos e ele continuou: “- Olha, você é bem jovem e, se quer um conselho, vou lhe dar de graça! Muita gente acredita num Deus que não existe, num Deus bom e misericordioso que vai acabar com as dores do mundo, que vai destruir a maldade e a tirania e vai fazer com que todas as coisas aconteçam segundo nossos pedidos em oração! Alguns acham que ao morrer, irão para o céu! Outros, que ficarão vagando por aí e, quando surgir nova oportunidade, voltarão para o Planeta em outros corpos e outras vidas! Alguns acham que vão virar adubo assim que partirem! Cada um tem uma verdade, e a defende de forma intensa... Você já parou pra pensar nisso? Nas coisas que acredita e quer para sua vida? Pois pense, afinal, pelas idéias apresentadas, nenhum final é feliz, porque se baseia em incertezas, através das muitas idéias! A única coisa que vale a pena realmente é viver o meio, pois ele pode ser feliz... Ou não! Meu meio para ser feliz é a leitura, é a conquista do conhecimento...”. Terminou de dizer isso, voltou ao seu livro calmamente, enquanto eu tentava entender o sentido daquilo tudo.

     Depois daquele dia, tive mais uns dois contatos com o Velho Tião, que sempre me acolhia com um sorriso largo de dentes amarelos mal cuidados! Apertava minha mão de forma enérgica, parecendo querer arrancá-la. O tempo passou, fiz minhas faculdades, comecei a lecionar, e segui o conselho de Tião, não me preocupando mais em esperar o Final Feliz, mas vivendo intensamente o “Meio Feliz”. Isso fez de mim o que sou...

     Quanto ao Velho Tião, partiu já há alguns anos, e nunca voltou para esclarecer se o final é feliz ou não. Lembrei-me dele ao passar pela Praça da Matriz e ver uma criança sentada embaixo de uma árvore com um livro nas mãos, lendo com voracidade. No fundo, acho que Tião se tornou eterno, e foi fazer parte do conhecimento que deveríamos ter de que todo princípio e meio podem ser felizes! O final cabe a cada um descobrir por si.