Momentos e Bartimeu

É dia quente, atmosfera de estufa, denso.... Há nuvens, verdadeiros rios ameaçadoramente em cima de nossas cabeças; há também um sol, já cansado de si mesmo, de sua imponente presença neste dia tão radiante, daqueles que são alegres por fora, mas enfadonhos por dentro. Era assim o dia 13, de um trabalhoso ano de 2002, de um acelerado mês de setembro.

Ao virar a esquina, ofegante, querendo galgar logo a avenida, vejo uma moça, mui bela, olhos doces e frescos, fez-me lembrar de uma atriz provinciana de que não me lembro do nome agora. Ela me olhou, eu a olhei, disfarcei, olhei o horizonte, perdi-me, senti-me desajustado, desengonçado. Esforcei-me para que ela não percebesse o súbito motim que meus reflexos me faziam, endireitei-me, nossos olhares se desencontraram, ela seguiu seu caminho, nunca mais a olharei. Esquecerei de seu rosto ao virar a esquina, e a realidade se esvairá de mãos dadas com a memória.

Passo em cima do Viaduto Pedroso, o verde de suas árvores esquadrinhando o céu e seus agradáveis passarinhos merecem um parágrafo. Quase me esqueço do furdunço da cidade quando olho para o alto, só copas, céu e pássaros. Uma distração também é um tropeção na calçada mal ajustada da ponte.

Saio a caminhar pela Avenida Liberdade, em direção à estação São Joaquim. Vejo homens trabalhando em uma obra, prédio de luxo em gestação no ventre da cidade de São Paulo. Miro os andaimes suspensos, os capacetes, os uniformes; escuto os sons do martelo, da serra, os uivos do aço e da madeira resistindo firmemente à entrega de sua natureza de madeira e aço, inabaláveis, invencíveis em sua rigidez, como se fossem os últimos e honrados senhores da Guerra dos Canudos¹. Firmemente lutando contra a ação humana.

Vejo o humano, melhor dizendo, o proletário, vendendo sua força e sua vida em nome da Grande Civilização. Proletário amigo, nos exatos 10 segundos que me demoro enquanto caminho e te vejo trabalhar, sinto como uma compaixão fraterna. Depois de pronto o edifício, não poderás habitar nele. Tens passe livre para ultrapassar os tapumes enquanto carrega o cimento e a trena, mas quando não houver mais tapumes, o cimento estiver seco e as paredes bem medidas, há de ter seguranças e porteiros, que prontamente negarão a sua entrada, esquecerão de seu trabalho e cuspirão em você. Tchau e Dieu vous bénisse², companheiro.

Deixando-me ir, encontro João Bartimeu, da banca de jornal, que aproveita o jardim do McDonald’s, que fica em frente, para dispor livros usados, como biblioteca fast-foodiana ao ar livre. João não estava na banca de jornal, estava indo à estação, pegaria o trem e desembarcaria na minha estação.

Senhor João, por que esbarrastes na minha vida contemplativa? Por que roubastes o meu percurso? Agora, desesperadoramente, por alguns minutos, meu destino é ligado ao teu, João. Se tu parar para comprar uma garrafa d’água, terei de parar também, se teu bilhete não funcionar na catraca, terei de te emprestar o meu. Firmamos um elo inexorável pelos próximos 40 minutos e sinto-me como privado do livre arbítrio. Eu e João vamos conversando.

João Bartimeu é um grisalho senhor que alcança virilmente os 60 anos. Camisa com as mangas arregaçadas, dois botões fora de suas fendas e, por dentro, correntinha de ouro sustentando uma cruz no peito queimado do sol. Típico senhor que vive contando histórias de sua infância. Certamente sente angústia de envelhecer, mas sorri após falar que, quando criança, ao subir no pé de manga no sítio do Seu Ariovaldo, agarrou uma colmeia de vespas e foi picado na ponta do nariz.

O velho João já me repetiu essa historieta umas vinte vezes, tem mais umas dez que vire e mexe lhe ocorrem, e ele conta. Sorri, rejuvenesce, e conta.... Já no trem, João me fala que o tempo voa, esse devaneio poético me faz refletir. O tempo não voa, o tempo anda, a vida voa, os momentos voam, voam, sim! De nossa memória.

Passamos a vida decorando técnicas diversas. Lembramo-nos do DRE³, da legislação, do balanço, mas nos esquecemos das garotas com olhares doces, caminhando despretensiosamente na rua que venta, dos proletariados com o suor em seus rostos luzidios, dos humildes livros do quintal do McDonald’s, que se unem, numa mescla de sentimento e vida, sob um céu pesado de rios, sob um sol cansado e trabalhador, formando uma rica trama, conhecida como vida, para quem quiser olhar. Mas poucos olham, e pegam o trem lotado para chegar logo em seus destinos.

Será que eu, chegados os sessenta, terei só vinte, vinte historietas, pois detalhes me terão escorrido pelos dedos, agora trôpegos e enrugados? Talvez sim, a memória falha... Abençoada vida, não te lembrarei muito como é devido, lembrar-me-ei de apenas poucas historietas remotas. Me esquecerei dos detalhes que me alegraram. Me lembrarei do falecido Bartimeu.

¹ Alusão à luta de Antônio Conselheiro e aos últimos canudos (nome dado aos revoltosos do referido conflito), que, mesmo com a guerra já perdida, não se renderam e foram mortos pelas forças militares republicanas.

² Deus vos abençoe, em francês.

³ Termo Contábil. Demonstração do Resultado do Exercício. Alusão aos conhecimentos técnicos profissionais.

Caique Souza
Enviado por Caique Souza em 05/01/2017
Reeditado em 08/06/2020
Código do texto: T5873362
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