Um Amigo Bom de Briga
 
Jonas era meu amigo de infância. Brincávamos de bolinha de gude e também de lutas. Ele não era muito querido na rua. As mães dos demais meninos não deixavam seus filhos brincarem com ele por ser brigão e pela fama que tinha de praticar furtos no supermercado do bairro. Apesar disso, ele era meu amigo, talvez porque fôssemos os mais largados na rua, sem controle dos pais.

Eu assisti a muitas brigas do Jonas. Ele era craque. Tinha um tio faixa preta de judô que o ensinava. As lutas dele tinham um misto de boxe, judô e um certo gingado indígena. Ele dizia que tinha sangue de índio correndo na veia.

O fato é que, por ser eu o único amigo dele ali na rua, acabei aprendendo alguns golpes por pura brincadeira. O básico era: um soco direto no nariz, seguido de um recuo e rápido avanço em direção ao pescoço e uma alavanca com o corpo para derrubar o oponente no chão, caindo por cima e com um braço enlaçado no pescoço e a outra mão livre para lhe socar o rosto.

Aprendi essa sequência nas brincadeiras com o amigo, por simples repetição e entretenimento.

Um dia Jonas foi embora para Bananal, interior de São Paulo, e perdemos o contato. O tempo passou, e eu fui exposto a algumas situações de enfrentamento indesejadas.

Por ser muito franzino, rotineiramente um moleque atravessava do outro lado da calçada para implicar comigo, só porque eu era mais fraco. Coisa de cidade pequena.

Havia um moleque apelidado de botinha que me causava arrepio. Era meio perturbado, falava alto e rápido, andava ligeiro e encrencava com todo mundo. Um certo dia o danado caminhou em minha direção, chegou na minha frente e disse: “e aí, vai encarar?”.

Bateu aquele frio na barriga, pensei no que devia fazer e então me lembrei das lições do amigo Jonas. Sem titubear, olhei bem para o rosto do botinha, disfarcei uma baixada de guarda como se fosse arregar, e na surpresa acertei-lhe em cheio um soco no meio do nariz. Sangue espirrando. Não dei prosseguimento a sequência completa pois o medo era maior do que a raiva, apenas corri o quanto as pernas permitiram.

O moleque atentado foi correndo reclamar para o meu pai, que mal pode acreditar que eu era capaz de um estrago daquele no nariz do moleque. Simulou-me uma bronca e mandou o botinha embora.

Outros “rounds” foram necessários com o botinha, sempre com o mesmo desfecho, soco no nariz, sangue e "pernas pra que te quero", até que ele se cansou de perder sangue pelo nariz e me deixou em paz.

Contudo, moleques encrenqueiros não faltavam em Aparecida. Numa certa noite de domingo, caminhando pela calçada da Rua Padre Gebardo, ouvi uma voz de um beco escuro: “ ei otário, não encosta no carro do meu pai”.

Tentei não dar bola e continuei mais uns passos, e então de novo aquela voz: “ei otário, tá com medo?”.

Não resisti ao insulto e resolvi enfrentar a situação com honra. Eu era franzino, mas era orgulhoso. Voltei-me à voz escondida no escuro, e sem saber o tamanho da encrenca fui caminhando ao encontro.

Cheguei perto. Era um menino bem maior do que eu, mas agora não dava mais para voltar, então resolvi aplicar a sequência completa desta vez: soco no nariz, recuo, avanço, braço direito envolvendo o pescoço, alavanca e queda sobre o corpo do infeliz, mão esquerda livre para lhe socar a cara, e assim foi, um soco, dois, três... perdi a conta e só parei quando um monte de adultos estavam ao redor, aos gritos: “Ismair, Ismair!!!!”. Então resolvi perguntar a ele: quer parar? Ele respondeu imediatamente que sim. Levantei-me e fui embora.

Outros eventos como esse se repetiram com outros encrenqueiros, mas aquela sequência básica de golpes era sempre tão efetiva que me livrou de tomar boas surras na infância e também na adolescência.

Um dia, já adulto, fiquei sabendo que o antigo amigo Jonas havia morrido bem jovem. Sua vida descambou para a marginalidade, ficou internado na Febem de São Paulo várias vezes. Numa das vezes em que saiu, envolveu-se numa briga de bar e foi assassinado.

Nunca vi ninguém falar bem do Jonas. Sempre se referiram a ele como um marginal, bandido, brigão.

Nessas horas, ponho-me a refletir que talvez eu tenha sido um dos poucos a quem o Jonas tenha feito algo de bom na vida, pois graças a ele aprendi alguns golpes que me safaram de algumas belas surras que poderiam ter marcado negativamente a minha personalidade.

É estranho o destino de algumas pessoas. Para o mundo, o Jonas foi um mal, um verdadeiro vilão. Para mim, foi um bom amigo e lhe sou grato pelos ensinamentos. Tomara que Deus conte isso em seu favor onde ele estiver agora.