Domingo é Natal, mas você não tem culpa

O elevador do meu prédio não demora mais do que contar até nove. Mas até chegar ao sexto andar sou agraciado por uma enxurrada de “Feliz Natal” e “muita saúde, paz e prosperidade”, somada com mãozinhas que acariciam casaco, sorrisos de canto a canto e olhares de suposta bondade de vizinhos que sequer me dão bom dia de janeiro até meados de dezembro.

A louca do apartamento ao lado que não me deixa dormir porque passa a noite inteira discutindo com o gato na ausência do namorado. O lindão do apartamento de cima que tá sempre perfumado, que tá sempre engravatado, que tá sempre tão educado ao telefone, mas nem agradece a seu Amadeu por abrir o portão da garagem, porque tá sempre atrasado. A bonitinha do apartamento de baixo que todo dia detona a filha adolescente porque ela é gorda, que detona o marido porque ele ganha pouco, que detona a sogra porque ela é velha, que detona a empregada porque ela é pobre: FELIZ NATAL PRA VOCÊ, VACA.

Eu não sei qual é o problema das pessoas. Mas o meu problema é que eu odeio o típico clima natalino imposto e suas atitudes robóticas impostas e essas pessoas falsas pra cacete. É algo como “você PRECISA esquecer que eu te sacaneei o ano inteiro e confirmar presença nesse amigo secreto” ou “eu sei que a gente mal se olha no corredor do trabalho, eu sei que se eu pudesse você nem estava mais aqui, eu sei que eu caguei pra você o ano inteiro, mas AGORA, na data do nascimento de Cristo, a gente PRE-CI-SA deixar de rancor”.

Semana passada, por exemplo. Me toquei que eu nunca simpatizei com a decoração de Natal de Salvador. Porque 1) ela é tosca; 2) quem decora parece estar pouco se lixando pro espírito natalino, mas sim preocupado em exibir a marca do patrocinador; 3) ela, quando você lembra que os assaltos no Campo Grande ainda existem, faz você entender que essa felicidade reluzente não te livra da angústia.

Ontem, por exemplo. A região do Iguatemi fica a menos de vinte minutos de casa. Mas, como estamos às vésperas de Natal — e a multidão lota loucamente o Shopping da Bahia, e a multidão lota loucamente as passarelas, e a multidão reduz loucamente a velocidade dos carros pra poder estacionar, e a multidão atravessa loucamente pelo meio dos carros sem se importar com o sinal aberto —, a região do Iguatemi pode ficar a mais de sete horas de casa. A região do Iguatemi pode ficar a “vou ter que desmarcar tudo que eu planejei pro resto da vida” de casa dependendo do dia e da hora que eu decida seguir a minha vida. A região do Iguatemi pode ficar a “que merda eu tô fazendo aqui?” dependendo da hora que eu decida ir. A região do Iguatemi, com mil vias, mil estabelecimentos e mil obras, pode ficar a “caramba, você vai de bicicleta a Marte?”, dependendo da hora que eu decida voltar.

Todos os meus namorados, todos os anos, sempre me culpando: “a gente deveria ter ido pelo caminho que falei, mas você nunca me ouve”, “se você não demorasse tanto pra se arrumar, talvez a gente não pegasse essa merda de trânsito”, “não aguento mais essa cidade e essas festas e esse trânsito vagabundo e você cada dia mais se prendendo a isso aqui”. Não é impressão, muito menos coisa da sua cabeça: todo mundo resolveu mesmo se locomover na cidade pra comprar presentinho nessa época do ano, mas a culpa não é sua.

Domingo agora, por exemplo. Mais uma vez a família inteira reunida na casa de tia Izildinha. Mais uma vez as cobranças, o barulho das crianças, as risadas altas dos adultos, as histórias do Natal de 1972. E, como o Natal de todas as famílias é igual, mais uma vez vão te culpar por tudo que puderem. Sua avó vai, mais uma vez, dizer que não aguenta mais as dores na cervical e na lombar. Vai dizer, mais uma vez, que é melhor pra ela e pra todo mundo que ela morra logo no próximo ano. E você, que é um dos netos que pouco visita, vai se sentir culpado pelo desejo de morte da vovó. Mas grava isso: você não tem culpa.

Sua tia vai reforçar que você sumiu do mapa. Tudo bem que você trabalha o dia inteiro, estuda, faz parte de mil projetos profissionais e precisa ganhar dinheiro pra se sustentar, mas custa aparecer pra rever pela milésima vez o álbum da família? Ela vai explicar que bolo pode solar se você abrir o forno antes dos 30 minutos. Vai explicar que bolo pode solar se você colocar uma ML a mais de leite. E porque você está cansado de todo o trabalho que fez durante 360 dias no ano, você simplesmente vai cochilar enquanto ela fala. Ela vai dizer, mais uma vez, que você tá sempre desinteressado nos assuntos da família. Mas grava isso: você não tem culpa.

Seu tio vai contar aquelas piadas velhas de sempre. E, bêbado, vai dizer que “bunda de viado fica intacta no caixão porque o que é do homem o bicho não come”, e você, reacionário, vai ser o único a não rir. A namorada de voz nasalada do seu primo vai comentar o concurso de beleza do programa de TV, dizendo que acha a loira mais bonita do que a “moreninha” e nem tente dizer que é racismo. Vão chamar travesti no masculino, dizer que mulher precisa se dar o respeito pra não ser assediada, que cinema brasileiro é uma bosta. Se você tentar explicar, vão revirar os olhos e dizer que você sempre leva tudo muito a sério, mas grava isso: você não tem culpa.

Ando muito cansado das famílias e suas árvores de Natal enfeitadas de mágoa, ignorância e preconceito. E os doces e empanadas das tias com gosto de mágoa, ignorância e preconceito. E as crianças arrumadinhas, com seus cabelos arrumadinhos, correndo pela casa inteira, querendo que o priminho morra porque de novo ganhou mais presentes. E eu, por mais um ano, forçado a fazer coisas terríveis.

A melhor parte do Natal é quando, lá pelas duas horas da manhã, eu vou para o terraço da casa de tia Izildinha e fico em silêncio olhando as luzes dos apartamentos, aos poucos, se apagarem. A melhor parte do Natal é quando tudo fica escuro e eu, finalmente, me sinto sozinho.