Os mundos de todos nós


     Ele se admira tanto que deixou de ser real e se tornou uma personagem. Sua vida não é mais história, mas ficção. Não se pauta mais pela realidade e nega a ideologia atual da diversidade, mas se apega a si mesmo e tudo é gerado a partir de sua visão. Ainda que sofra e sinta dor, não negará o que é, a sua personagem, a sua ficção; pois, se negasse, morreria. Não a morte física, mas a da ideia. E só essa tem sentido, pois, é nessa, que ele existe como quer. É somente nesta que ele constrói e construiu tudo que existe. Não a existência de todos, mas somente a dele. Dele tudo flui. O mundo externo só tem sentido quando criado e recriado a partir de suas necessidades. O mundo precisa ser como ele deseja, pois tudo que lhe difere deve ser aniquilado. Não aniquilado de maneira efetiva, mas em sua ideia. Pois, se assim não fosse, teria o contraditório a teimar sua atenção, mas sua atenção só pode estar voltada para sua ficção, sua projeção; tudo o mais é transitório e supérfluo.

     Todos os seus valores não são os valores do mundo, mas os valores que se desprenderam de sua reflexão. Os valores gerados pelo mundo externo são ilusórios, mas os que são gerados pela sua necessidade são perenes. As religiões do mundo são todas falsas, pois se apóiam em ideias que não nasceram de si mesmo. A verdadeira religião é aquela formada dentro de si. Ele não se distancia das pessoas, mas apenas se relaciona com aquelas que se enquadram perfeitamente bem aos seus dogmas. Pois estes exprimem o belo e sublime. Estes não seguem o zeitgeist, mas o verdadeiro e profundo exercício da reflexão espiritual. Só se pode atingir o Espírito por si mesmo e não na confusão da coletividade. A coletividade é caos. Não quer dizer que ele não tenha relações com as pessoas que vivem a fantasia da coletividade, mas essas relações são puramente pragmáticas. Ele as usa para conseguir as futilidades da existência. Não sabe seus nomes. São seres sem história, pois esta se perde no emaranhado da caótica coletividade.

     Talvez, o leitor esteja irritado com tal sujeito. O texto não se refere apenas a um sujeito, mas a maioria. Falo da maioria para não cometer nenhuma injustiça ao falar todos. Não sou dos que gostam de generalizar, mas sempre deixo uma pontinha de esperança. Talvez, também, o leitor tenha se agradado do texto e das ideias da maioria. Se esse for o caso, a minha hipótese é válida.

     Tentarei explicar melhor. A maioria vive a partir de suas compreensões do mundo externo. E é fato que essas compreensões são muitas, são diversas. Se a verdade existe, temos duas possibilidades: todas estão erradas ou apenas uma está certa. A maioria tem a tendência de não aceitar a primeira possibilidade, pois, se ela fosse a certa, até mesmo sua compreensão estaria errada. Uma coisa que a maioria não suporta é estar errada. Então sobra para a maioria a segunda possibilidade. Apenas uma compreensão estaria certa. E a maioria escolhe a certa e por meio dela vive. No entanto, a escolha pela certa, não é uma escolha unânime, mas muitas estão certas para muitas pessoas. De maneira que a maioria não vive a partir da mesma verdade, mas de verdades eleitas por si mesmas. E em nome dessas verdades, a maioria é capaz de tudo. Em outras palavras, ninguém deseja a verdade, mas o que elegeu como verdade. E isso é sacralizar a subjetividade.

     Transcrevo agora um diálogo que tive com um amigo:

Amigo: Não concordo com essa visão. Não me vejo como uma ficção, ao contrário, me vejo como um indivíduo inserido numa sociedade e que faz história real.

Eu: Entendo. Mas você deve concordar que seus valores não são os mesmos valores da coletividade. Nem mesmo daqueles que fazem parte de sua relação mais íntima.

Amigo: Talvez, uma coisa ou outra, mas o principal está alinhado.

Eu: Desculpe-me, mas é justamente o principal que jamais estará alinhado. Poderíamos começar pela sua compreensão religiosa. Você é crente, ateu ou agnóstico?

Amigo: Agnóstico. Não entendo que minha escolha religiosa possa me impedir de não ser uma pessoa histórica.

Eu: Bem. Você é agnóstico. Eu até acho essa opção a melhor. Não a entendo como se quisesse ficar em cima do muro, mas uma escolha razoável. Mas você deve concordar que por ser agnóstico automaticamente você criará todo um mundo à parte do mundo dos crentes e ateus.

Amigo: Sim. Efetivamente, sim, mas isso não me impede de conviver com eles.

Eu: É verdade, isso é fato. Mas você convive com eles por puro pragmatismo e não por afinidades. Afinidades são produzidas por ideias e suas ideias não são as mesmas. É possível que você tenha afinidades com um crente ou um ateu, mas essas afinidades devem existir por meio de outros alinhamentos. Exemplo, você pode ter alguma afinidade por meio da política, por meio da filiação a um clube esportivo, etc.

Amigo: Sim, sem dúvida.

Eu: Mas você também deve concordar que a maioria cria hierarquias para seus valores. Como você é agnóstico não deve se preocupar muito com questões religiosas, diria até que beira a indiferença. Talvez, a política seja mais importante. Você é comunista ou liberal? Esquerda ou direita?

Amigo: Bem, não sou um especialista em política, mas acredito que ela seja mais importante que religião. Na sociedade, cada uma tem sua importância e acho que não deveriam se misturar.

Eu: Ora, já pode-se ver que o amigo tem zelo pela laicidade. Eis um valor que você não deve abrir mão. E todos aqueles que concordam contigo nesse ponto devem desfrutar de sua amizade. Deve mesmo criar laços e afinidades.

Amigo: Sei o que você quer dizer. Amizades nascem com facilidade quando as ideias se alinham.

Eu: Perfeitamente. Eis algo que pode nos aproximar mais, sua inteligência rápida. Não tenho tanta paciência para inteligências lentas. No entanto, sou crente. Gosto da discussão religiosa e a acho mais importante que política. Isso talvez faça com que nossa amizade se esfrie, pois há alguns desalinhamentos importantes entre nossos valores.

Amigo: Sim, é possível. Mas podemos ter uma amizade e uma relação pacífica; basta respeitarmos a opinião de cada um e se essa for muito contraditória, podemos ainda evitar certas discussões para não alimentarmos as contradições.

Eu: Sim e isso é feito. As amizades só são possíveis quando deixamos de lado aquilo que pode danificá-las. Evitamos temas contraditórios para cultivarmos as amizades. Pelo menos aquelas que damos mais importância. Aquelas em que valores que se alinham são justamente os valores principais. As outras amizades com menos valores alinhados, apenas evitamos. Por exemplo, posso manter uma amizade pacífica com um ateu que esteja disposto a discutir religião e posso me manter distante de uma amizade com um crente que pensa ter encontrado a verdade suprema e estar fechado à discussão de ideias. Isso porque a discussão para mim é algo superior. O travar ideias para mim é um valor em si mesmo. Então tenho a tendência de buscar amizades a partir desse valor. E esse valor não é o único, mas é por ele que vivo e crio o meu mundo. Fico tão admirado com esse mundo dos meus valores que simplesmente elimino qualquer outro mundo e todas as minhas atividades giram em torno do mundo subjetivo que criei, como se fosse o único. O outro mundo só o uso pragmaticamente e não efetivamente. Não penso e nem medito outro mundo, mas apenas o mundo de meus desejos e afinidades. Para cada mundo, Deus tem atributos que lhe damos; ou até mesmo nem haveria um deus ou deuses.

Amigo: Entendi. Bem interessante. Não estou convencido por completo e talvez eu não seja um agnóstico desinteressado pela discussão de ideias religiosas, pois ainda estou aqui te ouvindo. E não faço isso por pragmatismo, mas porque me agrada.

Eu: É disso mesmo que estou te falando. Isso te agrada. Você traça o seu dia a partir do que te agrada, tudo que você tem que fazer que não seja do seu agrado, você apenas faz por praticidade, por utilitarismo. Por isso sempre estamos esperando o fim do expediente, o fim de semana, as férias.

     Bem, não prosseguimos no diálogo porque o amigo precisava ir trabalhar, o horário do almoço já passara. Despedi-me dele e prometemos continuar a conversa sobre nossos mundos. Tenho certeza que em breve ocorrerá um daqueles encontros “sem querer” e poderemos continuar nosso diálogo, pois sempre nos atraímos e nos movemos em torno daquilo que nos agrada.
Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 06/12/2016
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