Porta Fechada

Queimava de curiosidade para saber o que havia atrás daquela porta. Estava sempre fechada. Por quê? Quando indagados sobre aquele quarto, os adultos desviavam o assunto. Se o interrogatório se prolongasse, a arenga era encerrada com a frase “seu avô não gosta que entrem lá!”. Pronto, o assunto terminava aí, mas a curiosidade não. O que meu avô guardava lá que ninguém podia ver? Jogavam a culpa no velho, porque os curiosos não tinham coragem de perturbá-lo com perguntas. Era notória sua impaciência com crianças. Cortava logo qualquer aproximação, mandando o intruso embora: “Lugar de criança é no quintal, vão brincar, vão!“. Era sabido que nunca pegou um filho no colo. Contam que tinha sempre ao seu alcance uma vareta longa para afastar os meninos que se aproximavam dele. Empurrava o moleque com a vara e gritava para minha avó: “Mariquinha, tira esse menino daqui!”. As pessoas contavam isso e achavam graça. Onde estava a graça? Havia também outra resposta recorrente, “não há nada lá para seu bico. Deixa de ser abelhudo, menino!”

Uma vez uma empregada de vovó me disse para esquecer o quarto, que lá tinha um monstro que devorava criança curiosa. Minha mãe a repreendeu severamente. Que não ficasse inventando esse tipo de estória, que a velha (minha avó) iria ficar muito triste. Fiquei pensando porque minha avó ficaria triste. Diabos! Ninguém poderia me contar a verdade? Pra que tanto mistério? Muitas vezes tirei proveito disso. Voltava ao assunto do quarto proibido quando os adultos estavam reunidos na sala. Minha insistência causava certo mal estar. Vovó olhava para minha mãe de soslaio, cobrando uma providência. Havia um embaraço geral. Aí, meu pai saía com uma solução que me agradava muito. “Toma aqui cinco cruzeiros, vai comprar picolé”. Imediatamente eu corria para a rua e esquecia o quarto.

Aquela porta foi o primeiro mistério da minha infância. Minha avó gostava das janelas abertas. “O sol precisa entrar pela casa pra arejar o ambiente”, dizia ela. Ora, por que só aquele quarto não precisava ser arejado? Será que havia lá dentro um tesouro, ou então o monstro que comia crianças? Por muitos anos suportei a curiosidade me mordendo. Até que não agüentei mais. Comecei a arquitetar planos para burlar os adultos e entrar no quarto. Perdi muitas horas do dia espreitando de longe, na esperança de ver alguém abrindo aquela porta. Nada! O quarto permanecia tão fechado quanto a boca dos adultos. Nenhum pio, nenhuma dica, só as evasivas de sempre. Desvendar aquele mistério passou a ser um desafio, uma questão de honra.

Um dia morreu uma tia, a filha mais nova de minha avó. O câncer não respeitou a ordem de nascimento e levou a caçula primeiro. Foi uma tristeza na família. Minha avó ficou desolada. De alguma maneira percebi que aquela morte prematura iria matar também o mistério que me afligia. Na hora do enterro, tive o estalo. Todos se aprontaram para acompanhar o cortejo. Pedi a meu pai para ir junto com os primos. Não fui com ninguém. Fiquei trancado sozinho na casa de meus avós. Eu e a porta fechada. Vasculhei o quarto de minha avó, revirei gavetas e roupas. Encontrei uma caixa de madeira. Dentro dela, uma chave. Só podia ser da porta. Meu coração disparou, tive que enxugar as mãos. Estava tremendo de medo e emoção. O que encontraria atrás daquela porta?

Girei a chave com muito cuidado. A fechadura meio engripada demorou a funcionar. A porta rangeu. A garganta estava seca. Se precisasse gritar, não conseguiria. Fui empurrando a porta devagarzinho. O quarto estava na penumbra. Quando a luz entrou, percebi um móvel coberto de teias de aranha, no centro do quarto. Era um berço. Era um quarto de criança que jamais fora usado, tudo arrumadinho, triste e empoeirado. Só mais tarde pude compreender que por trás daquela porta fora trancada para sempre a alegria de minha avó e daquela casa.

Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 22/11/2016
Código do texto: T5831582
Classificação de conteúdo: seguro