Noites mal dormidas

Assim era o enredo: ela queria dormir, ele queria não roncar. Dois propósitos simples e justos. Mas, inalcançáveis. Ele roncava, ela não dormia. Uma pequena desarmonia infernal que resultava em noites insones e humores mal disfarçados. O propósito dele era sincero. Ao deitar-se, providências especiais eram tomadas: deitar-se de lado, travesseiro alto, adesivos especiais sobre o nariz para alargar as fossas nasais. Tudo para vencer o ronco, inimigo noturno do sono, trovãozinho ousado e impertinente que insistia em acordar sua parceira.

Jamais se deitava ao mesmo tempo em que a mulher. Dava-lhe uma vantagem de uma hora ou mais. Via um pouco mais de TV ou prolongava a leitura de um bom livro. Depois, certificando-se de que ela já caíra no sono, aproximava-se cautelosamente do leito, pisando leve como um gato velho, sem fazer o menor ruído, feliz por vê-la entregue ao sono e aos sonhos. A noite começava bem. Conferia a altura dos travesseiros e o adesivo nasal. Perfeito! O ar entrava livre pelas narinas. A respiração era limpa e suave. O único som que cortava o ambiente era um leve ressonar da mulher em seu merecido descanso. Um pouco mais e ambos caíam no sono profundo dos justos. A noite ia seguindo maravilhosa. Mas o ronco não tinha se dado por vencido. Insidioso, aguardava seu momento, recolhido nas profundezas pulmonares, pronto para irromper com seu exército retumbante de trombetas infernais. Afoito não era. Como um velho diabo, conhecia sua força e sabia sua hora. Não precisava precipitar-se. Vinha aos poucos, engrossando as lufadas de ar expelidas pelo dorminhoco desatento. Uma trilha sonora terrível estava a caminho. Havia um momento certo para dar início ao medonho concerto. O sono profundo ia relaxando toda a musculatura facial, até provocar um estreitamento na região posterior da cavidade bucal. A respiração ia ficando pesada. O ar passava espremido pela laringe. O ressonar ia sendo substituído por um som rouco, cada vez mais grave. Era o sinal aguardado pelo malvado para dar inicio à sua temível orquestra. Então, vinha com tudo, um estrondo poderoso capaz de despertar um urso polar em hibernação.

Estava iniciada a segunda rotina noturna daquele casal. O ronco liberto, impiedoso, estrondoso, verdadeiras “trombetas de Jericó” obstinadas em destruir as muralhas do sono. A mulher, acordada bruscamente por aqueles sons roufenhos e cavernosos, já não se sobressaltava porque acostumada àquele ritual. Pacientemente contida, desferia no parceiro pequeno tranco para interromper o processo. Uma cotovelada leve pra não lhe quebrar uma costela, mas enérgica o suficiente para alterar-lhe o ritmo respiratório. Ele acordava sobressaltado e culpado. Sabia por que estava “apanhando”. Conferia o adesivo sobre as narinas, limpava a garganta, levantava um pouco mais o travesseiro, virava-se cuidadosamente para o outro lado, tentando controlar o fluxo respiratório. Ficava imaginando inutilmente alguma fórmula mágica que tornasse possível dormir sem respirar.

A companheira voltava a ressonar. Cabia agora a ele a responsabilidade impossível em não voltar a despertá-la. Tentava manter-se imóvel no leito. Uma vontade súbita de virar-se para o outro lado era contida, mesmo com o incômodo muscular resultante da posição forçada. Finalmente, cansado física e mentalmente, caía no sono. Durava pouco. Pá!! Lá vinha uma joelhada nas costas do bruto, seguida de uma fala soturna, quase entre - dentes “amorzinho, você está roncando...” Como se ele não soubesse... O que fazer? Dormir acordado? Parar de respirar? Sufocar com os travesseiros a companheira, que não podendo dormir também o despertava com gestos tão delicados? Ficar o resto da noite sentado pensando no nada, para evitar dormir e roncar? Melhor levantar-se e ler um pouco na sala. Não demorava nada, era despertado da leitura. “Amor, cadê você? Vem prá cama!”. Ele, incrédulo, só tinha uma certeza. Um dia poderia deixar de roncar. Entender a mulher, jamais.

Domingos Sávio ferreira
Enviado por Domingos Sávio ferreira em 30/10/2016
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