A AGONIA DO TRAIDOR DE TIRADENTES (IV)

Capitulo IV

O coronel andava à toa pelas ruas estreitas, subindo e descendo ladeiras, com passos vacilantes. Às vezes parava na Fonte do Ribeirão para admirar a beleza daquele monumento, um dos mais antigos da cidade. Ficava olhando a água jorrar das carrancas da Fonte. Escravos passavam para apanha água.

Depois, seguiu para a praça de maior movimento comercial, onde os leiloeiros chamavam pessoas para comprarem as mercadorias. A mercadoria mais valiosa era o escravo. Os interessados na compra dos negros revistavam os dentes, os pés e as virilhas dos escravos, avaliando a força física deles.

Ele se entreteve por algum tempo com o pregão dos leiloeiros. Quase oferecia um lance para comprar um escravo que lhe interessou pela estatura muito alta, com fisionomia semelhante a um negro que possuirá em Minas. Desistiu ao constatar que o dinheiro a ser pago pelo escravo ia lhe fazer falta.

O coronel resolveu sentar-se num banco do logradouro público, arborizado com pés de amendoeiras. Nessas andanças, usava chapei que o tornava menos reconhecível.

Comerciantes, caixeiros e simples curiosos faziam comentários sobre o coronel.

-Aquele ali é o Silvério dos Reis, dizia um deles.

Um sujeito metido a sabichão perguntou:

-Você não sabe quem é?

-Não, respondeu um caixeiro.

-Ele traiu Tiradentes.

-Foi mesmo? Admirou-se um homem que fumava um charuto.

-Não é possível, duvidou outro elemento.

-Não é possível? Ora, exclamou um comerciante.

-Um traidor desse merece ser morto, sentenciou um sujeito de barba.

-Para mim é um leproso.

-É um aborto da natureza.

O bate-papo ficou exaltado. As vozes dos populares cresciam, levando um português barrigudo a pedir mais silêncio, porque a conversa estava atrapalhando o atendimento aos fregueses. No entanto, a discussão continuou caótica. Todos querendo falar de uma só vez.

-Ah, se aparecesse um cabra para matar este peste, desejou um rapaz.

-O outro também foi um tolo.

-Quem?

-O Tiradentes.

-Por quê?

-Não vale a pena morrer por um povo ordinário desse, disse o velho indignado.

-Tá certo, mais esse Silvério dos Reis é um vil traidor.

-Deve estar bem de vida. É fidalgo. Tá com o bolso cheio de dinheiro.

-Não interessa ganhar dinheiro dessa maneira, afirmou um moço irritado.

-Essa figura me enoja, me causa asco. O homem cuspiu de nojo.

-É um asqueroso.

-Ele caminha encurvado como se carregasse um peso nas costas.

-É o peso da consciência que dói.

-Qual é a profissão dele?

-Traidor.

-Não, ele serviu à Coroa, interveio um português.

-E o que é a Coroa senão traidora do nosso povo? Leva nossas riquezas, nos escraviza, nos prende e mata.

-Nisso aí eu concordo com você.

-Tiradentes tinha razão.

Houve um silêncio. Uns disseram que era melhor acabar com a conversa: Outros argumentaram que o assunto estava bom e palpitante. Por isso, preferiam continuar falando.

-Tiradentes foi um trouxa. Deveria estar vivo para continuar lutando. Era só ter pedido clemência à Rainha Dona Maria I.

-Como?

-Os outros fizeram isso. Tiradentes deveria ter fingido estar arrependido.

-Tiradentes era homem de fibra. Morreu com dignidade, passando para a história. É herói e mártir. O frei Raimundo Penaforte que confessou Tiradentes antes de morrer, disse esta sobre ele: “-É um daqueles indivíduos da espécie humana que colocam em espantos a própria natureza”.

-Tiradentes morreu pela boca igual a peixe. Os entendidos dizem que era linguarudo, comentou um cidadão com aparência de letrado.

-Se ele assumisse ou não a responsabilidade pela Inconfidência daria no mesmo. Seria enforcado do mesmo jeito.

-Que nada. Bastava ele pedir perdão como fizeram os outros.

-Você está enganado. A Coroa tinha que sacrificar um. E esse tinha de ser Tiradentes, porque era o mais pobre.

-Isso não me convence.

-Você parece que é do lado do Silvério dos Reis, dirigiu-se um jovem para um português.

-Sou e daí, retrucou o português com raiva.

-Olha aí, ele é igual ao traidor, gracejou o rapaz.

-Fala baixo que pode estar nos escutando.

-Será que se julgar um traidor?

-Claro. Essa traição vai segui-lo pelo resto da vida.

-Todo traidor se arrepende. Aqui, no Maranhão, o Lázaro de Mello que traiu Bequimão, terminou se enforcando.

-O Silvério dos Reis não se matou porque é mau caráter.

-No caso dele, o suicídio não tem sentido. Não vive jogado fora. Parece até um homem de bem.

-Parece mais não é. Por dentro está pobre.

-Ele não foi o único traidor. Houve outros.

-O Silvério dos Reis foi o traidor mais sórdido.

-Uma coisa é você falar alguma coisa por medo de morrer como Tomaz Antonio Gonzaga e o Alvarenga Peixoto e outros. Outra é trair para tirar proveito como o Silvério dos Reis.

-Tu sabes de uma coisa. Eu acho que o Silvério dos Reis não traiu coisa alguma. Ele defendeu a Coroa, pois estava do lado dos poderosos.

-Será que o Silvério dos Reis ainda tem coragem de trair alguém?

-Eu que não boto a minha mão no fogo.

-Por dinheiro ele é capaz de tudo.

-Dinheiro compra tudo.

-Compra quem não tem caráter.

-Cedo ou tarde ele vai pagar pelo que fez.

-Vai demorar muito. Nesse tempo ele já estará debaixo da terra.

-Os ideais de Tiradentes estão florescendo novamente. A luta contra o jugo português continua.

-O povo não suporta a Coroa. E o enforcamento de Tiradentes ficou gravado na consciência do povo.

O coronel notou que estavam falando de sua pessoa. E tratava-se de seu papel na Inconfidência Mineira. Essa não foi a primeira vez que chegou a ouvir comentários sobre sua pessoa. Ocorreu numa de suas caminhadas ter sido molestado por alguém que o chamou de traidor da sacada de um sobrado. Sentiu um ligeiro calafrio pela espinha dorsal.

Nos últimos tempos, estavam aumentando as críticas contra ele, ouvia sussurros sobre ele por todos os lugares que passava. Agora o clima estava ficando insuportável. Teria que evitar andar nesses locais de muita aglomeração. Aliás, o comandante Venâncio advertiu-o um dia para não se expor ao público.

Erguendo-se bruscamente do banco da praça, o coronel deu as costas aos curiosos e tomou o rumo de casa. Ia pensando como falara aquele povo sobre sua participação na Inconfidência Mineira. Sem perceber, o coronel atravessava as ruas, a ponto de topar numa preta velha que carregava na cabeça um tabuleiro de mingau. Ela aborreceu-se e gritou:

-Que diacho…

-Desculpe, rogou o coronel.

A preta velha seguiu o seu caminho, apregoando a venda do mingau. O coronel caminhou apressado, olhando para frente para não provocar outro incidente.

Espantou-se ao ouvir passos de gente como se estivesse em seu encalço. O coroção palpitou. Virou-se para trás. Não era nada. Desde que sofrera um atentado ficou com esse trauma.

Uma carruagem parou perto dele. Era comandante Venâncio que da janela da carruagem cumprimentou:

-Como vai coronel?

-Estou escapando.

-Estou indo ao porto receber uns familiares da minha mulher que estão chegando do Rio. Depois, vamos conversar melhor. Dê minhas recomendações a dona Bernadina.

-Igualmente, comandante, dê lembranças para sua esposa.

A carruagem partiu com velocidade. O cocheiro, um negro ainda moço, tangia os animais com a habilidade de quem era adestrado no ofício. O comandante bateu com a mão para o coronel. Confortado com a gentileza do comandante, o coronel tece mais forças para subir uma ladeira tão alta que do topo via-se parte da orla marítima. Dalí, São Luís exibia toa a beleza dos casarões cobertos de azulejos.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 01/09/2016
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