A culpa é dos outros

A vida tem umas coisas que ninguém entende, a não ser do próprio ponto de vista. Tentar ver como o outro enxerga não é tarefa das mais fáceis, mas parece que o ser humano faz questão de se achar o dono único da verdade.

A culpa sempre é dos outros. A pessoa faz o que quer, não combina com ninguém, e quando dá errado, a culpa é dos outros. Nesta ótica, os outros são maus-caracteres e têm obrigação de pensar exatamente como a pessoa que os acusam.

Imerso em suas craniações filosóficas sobre a falta de respeito alheia, o funcionário sai de casa pro seu trabalho, pontualmente às cinco e cinquenta da manhã. Maquinalmente, cumprimenta os porteiros do prédio onde mora, o calor está chegando forte em Olaria.

“O diabo da van não chega nunca!”, vocifera mentalmente nosso amigo, ao ver que está no ponto há exatos e infindáveis três minutos.

Entra na van, cumprimentos cordiais que satisfariam uma geladeira são trocados indolentemente. Só que o motorista é lerdo demais, demora muito, a hora voa! Correndo à velocidade de lerdo cágado, ainda tem que ouvir o “reclamão” do motorista que reclama dos outros – logo ele!

Estação do trem, finalmente. Linha auxiliar, os trens são muito ruins. Ar condicionado, só em propaganda eleitoral. O trem para na estação, as pessoas se aglomeram em frente à porta esperando a abertura.

Adivinhem quem estava na “pole position” pra entrar? Claro, nosso amigo funcionário público.

A porta abre. Como cachorro de apartamento que não vê a rua por dias, o povo entra no trem de qualquer modo, educação fica do lado de fora do vagão, correria louca pra sentar sem o menor pudor de empurrar o próximo pra sentar num banco. Claro que ele se sente um Rubinho em pessoa quando, de “pole position”, ele vira o único a entrar naquela estação que ficou em pé.

Na próxima estação, o vagão enche mais ainda. Mas na seguinte, uma mal-educada mal-amada que estava sentada à sua frente faz menção de levantar.

“Quem vai sentar nessa porcaria sou eu!”

A dona levanta, a disputa pela bunda mais rápida tem rápido desfecho, quando ele, triunfante, senta em banco não prioritário para grávidas, idosos etc. Olha em volta e vê um bando de jovens sentados em bancos prioritários, mas não tem ninguém precisando deles.

“Rá, esse cara sou eu!”, é o pensamento vitorioso dele. Neste momento de suave vitória interior, uma voz estridente de mulher que adora fazer barraco na feira irrompe tímpanos adentro: “tem uma moça com criança pequena, tem uma moça com uma criança pequena”.

Quem perde o lugar, claro que é ele, porque ele foi o único que cruzou o olhar com a tal moça com uma criança pequena. Em volta, os jovens sentados em bancos prioritários fingem que dormem gostosamente...

Xingando a todos (mentalmente, claro), ele pensa no seu primeiro pensamento do dia: como o ser humano desrespeita os outros! O ser humano é egoísta e mal-educado por essência e podre por natureza! Analisa seu dia: porteiros de cara feia logo de manhã cedo, motorista da van lerdo e “reclamão”, os sem-respeito pela sua posição à porta de entrada do vagão do trem, os jovens roncadores dos bancos prioritários e a vaca barraqueira, todos pertencem a um bando de mal-educados egoístas que tornaram sua jornada infeliz logo cedo!

“Graças a Deus eu não sou assim”, ilude-se ele.

Gilson Macedo
Enviado por Gilson Macedo em 15/07/2016
Reeditado em 15/07/2016
Código do texto: T5698600
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