AS CANASTRINHAS

AS CANASTRINHAS

Em final dos anos cinquenta, passei aprazível estadia, na Vilariça, na amena e tranquila: “ Quinta do Bem”.

Tive a felicidade, na ocasião, de travar conhecimento com simpática velhinha, de rosto encarquilhado pelo sol, e cabelo alvo, como a neve, amiga da mulher do feitor.

Ainda havia, nesse recuado tempo, nas nossas pitorescas aldeias transmontanas, amorosas avozinhas, eximias narradoras de curiosas histórias, que entretiam longas horas de serão, e educavam os sentimentos dos ouvintes.

Uma, que escutei, entre muitas, no meu tempo de menino, recheada de encantadores e saborosos termos vernáculos, paralelamente com preciosos provincianismos, é a que vos vou contar:

Havia, há muitos e muitos anos, na comarca de Vila Flor - "A flor das Vilas", como o grande vilaflorense, Raul de Sá Correia, gostava de dizer, - pastorzinha, que não conhecia letras, por mais rodondinhas que fossem, nem povoado, além da humilde aldeia, onde nascera e se criara.

Numa luminosa e fresca manhã de Primavera, batida de sol doirado e resplandecente, quando as amendoeiras se toucavam de vistosas florzinhas brancas, assentou ir à Vila.

Sobre a cabeça, colocou o sedoso lenço de seda escarlate, que a madrinha lhe dera pelo aniversário; calçou delicadas chinelinhas de corda; ataviou-se com o melhor xaile que tinha; e abalou, alegremente, entoando loas à Senhora da Assunção - a que está no Cabeço, - em demanda de semente, para amanhar a coirela.

Pasmou-se, uma vez na Vila, com as casas branqueadas a cal - na sua aldeia, todas eram escuras, de pedra xistosas; - e com os artísticos umbrais, bem lavrados, que embelezavam portas e janelas, de igrejas e velhíssimas casas senhoriais.

Extasiada com tudo que via, deambulava, num encantamento, pelas tortuosas ruas, da antiquíssima Vila.

Porém, ao perpassar pela Matriz - cuja a riqueza dos ornatos do pórtico, a encantou, - verifica, atónita, que do interior do velho templo, saiam harmoniosos cânticos, que mais assemelhavam, hinos angélicos, do que simples coplas, entoadas por vozes humanas.

Tocada pela curiosidade, quedou-se a escutar.

No adro, jovem aperaltado, desenhava com a ponteira da bengala de ébano, caprichosos arabescos, na terra mole, enquanto esperava a namorada, que assistia ao culto.

Com esforço, vencendo o natural enleio, que sempre a dominava, quando falava com estranhos, perguntou-lhe: o que fazia esse mar de gente, em fato domingueiro, dentro do templo.

Para sua desdita, aconteceu ser maganão, o janota, e para se divertir da inocente pastorzinha, disse-lhe que oravam desse jeito:

-”Rezam, assim: Uma canastrinha, mais duas canastrinhas, são: três canastrinhas…”

Terminado o culto, a ovelheira, entrou sorrateiramente, no templo. Ajoelhou-se. Pôs as mãos na posição de rezar, conforme o jovem lhe ensinara, e repetiu, fervorosamente, a “oração” que lhe indicara.

Nesse preciso momento, passa o padre. Olhou. E o que viu?! Volitarem ao seu redor, três formosos e translúcidos Serafins.

Intrigado, acercou-se, pasmado com o que vira, e interroga meigamente a pastora:

- “O que rezas, minha filha?!…”

Encolhida, a pastorita, muito enleada, respondeu, baixando os olhos:

- “ O que me ensinaram: Três canastrinhas, mais duas canastrinhas. são: três canastrinhas…”

Ao escutar a grotesca “oração”, o cura, lembrou-se do bom Frei Bartolomeu dos Mártires, ao visitar terras de Barroso, e aconselhou-a a voltar, para lhe ensinar a doutrina.

Alegre, como um cuco, a pastorzinha, no domingo seguinte, foi à Vila…; e tornou a voltar….; mas nunca mais viu, o piedoso abade: anjos, luzes, resplendores…Nada!…

Inquerida a razão de estar triste, a pegureira, de mãos erguidas, suplicou: que a deixassem rezar a sua “oração”, porque, ao dize-la, sentia que Deus estava presente.

Contristado e relutante, o padre condescendeu, compreendendo que os designos do Senhor são bem diferentes do pensar dos homens…

Estava o abade a pregar as promessas divinas, quando enxerga, estupefacto, que lá no fundo do templo, ao redor da pastorzinha, havia um imenso halo, tão brilhante como o Sol; e translúcidos Serafins, rezavam de joelhos, ao seu lado.

Volvendo os olhos lacrimosos para o Céu, o padre lembrou-se das Bem - Aventuranças:

“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino do Céu!...”

Velhinha, no humilde catre da sua humilde casa, a pastora,entrega a alma ao Criador; e amparada por formosos anjos, entra no Céu, rezando:

"Uma canastrinha, mais duas canastrinhas, são três canastrinhas!..."

Humberto Pinho da Silva
Enviado por Humberto Pinho da Silva em 26/06/2016
Reeditado em 24/07/2016
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