Passeio de trabalhador

Mais um dia de trabalho, lá vai aquele funcionário público, após mais uma noite insone, rumo ao seu calvário diuturno: chegar na sua repartição na hora certa, mesmo que não tenha xongas pra fazer lá. Antes, um cafezinho no copo em casa, um pão dormido com margarina raspada do pote, porque está acabando e ele esqueceu de comprar.

Sai de casa, a caminho do ponto de ônibus, onde pega uma van até o BRT. Na van, como já é conhecido, todos educados, exceto a suspensão da condução, que teima em bater e ranger e perturbar o silêncio sonado dos passageiros.

Salta na rua da feira, caminha até a estação da Taquara, e se emudece quando vê a passarela para lá chegar. Uma velhinha lhe pergunta como chegar lá e ele explica, mas ela corta sua fala dizendo que não quer andar aquela volta toda de caracol da subida e da descida da passarela, prefere andar até o fim do mundo pra não ficar rodando que nem peru na estrutura de concreto.

“Velha mal-educada, por que não saiu andando em vez de me perguntar isso?”

A fila pra comprar o ticket é imensa, mas ele a enfrenta de forma estranhamente paciente. É esmagado na roleta, chega até as filas que ninguém entende dentro da estação. Consegue entrar num expresso daqueles, rumo a Madureira!

Vai em pé, lógico. O ônibus enche na próxima estação, já não consegue se mexer.

Já com raiva, escuta uma ladainha que o enche de furor: “Bom dia, senhores passageiros, em primeiro lugar peço desculpas por incomodar o silêncio de sua viagem!”

“Silêncio? Que silêncio, que calma é o caramba? Alguém jogue este chato pra fora!”, pensa ele.

Mas não acabou, o rapaz anuncia: “Trago aqui uma gostosura para adoçar a sua viagem! É luxo, é marca, é qualidade! Está dentro da validade, pode conferir!”

O impressionante é que a voz dos camelôs muda, mas o texto mantém sempre o mesmo. “É luxo, é marca, é qualidade” é um mantra que gruda que nem chiclete em seus ouvidos já cansados.

Devidamente cuspido na estação de Madureira, caminha até o trem. Espera na plataforma superior, e lá fora começa a cair uma garoa insistente, e ele não trouxe guarda-chuva. O autofalante avisa que o trem expresso para a Central do Brasil chegará na plataforma 6, linha E; claro que começa a correria. Baixaria total.

Usando sapatos de sola de couro, nosso herói desce as escadas de metal molhadas com maestria olímpica do gelo! O primeiro passo na escada, correndo, é seguro e confiante, aí começa... o segundo derrapa, mas ele não cai, o terceiro vem querendo deslizar pra derrubá-lo, e tal qual patinador do gelo, ele desliza escada abaixo sem colocar nenhuma parte do corpo no chão, mas parece que o mundo silencia e todos o olham, não se sabe se por admiração por um verdadeiro atleta-artista de rua patinando morro abaixo ou se por puro medo de se transformar ele numa bola humana de boliche pronta a fazer o maior strike que aquela estação já presenciara.

Rápido como sua esvaída dignidade costuma se esvair, entra no trem e se esconde atrás da uma das barras verticais da balaustrada do vagão. Esforça-se pra não resfolegar. Tenta bombear sangue pro rosto pra mostrar serenidade.

“Bom dia, senhores passageiros, em primeiro lugar peço desculpas por incomodar o silêncio de sua viagem!” – de novo?? Com o olhar furibundo, mira o miserável que tenta vender um descascador de batatas com propriedades milagrosas! Quando vê o tamanho do negão e os olhares se cruzam, apeia da macheza e desembolsa cinco reais pela mercadoria. “Tava precisando mesmo.”

O trem segue e, a cerca de 200 metros da estação da Central, um som estranho e o trem pára.

“Senhores passageiros, por questões de tráfego, este trem permanecerá parado por alguns instantes”, diz a sensual voz feminina portadora da má notícia. Passam-se 15 minutos, a 200 metros da estação. A chuva lá fora aperta, reclamações veladas dos passageiros. “Peraí, tráfego a 200 metros da plataforma?”

“Senhores passageiros, por questões técnicas, este trem permanecerá parado por alguns instantes”, diz a aquela gralha falante. Mais 10 minutos, temporal, palavrões de corar Juca Chaves ecoam no ambiente. Até os crentes estão xingando!

“Senhores passageiros, este trem permanecerá parado por alguns instantes, mas está sendo vistoriado neste momento, não saiam do trem”, insiste aquela vaca gorda! Mais 5 minutos, granizo, que ninguém sabe de onde vem!

“Senhores passageiros, as questões técnicas estão sendo solucionadas e em alguns minutos o trem continuará a viagem”, relincha aquela voz dos infernos!

3 minutos parado, chuva fustigando, todos correndo lá fora e ele preso no trem, assistindo a tudo desesperado!

Alvíssaras! O trem anda, finalmente! “Cadê a vaca atolada da voz, essa bruxa nariguda e verruguenta, cobra irritante que perturbou e atazanou todo mundo?”

Sai do trem esbaforido, irritado e molha-se todo, porque a chuva é de vento! À saída da estação ainda perde um dinheiro pra um camelô em troca de um guarda-chuva vagabundo. Menos vinte reais na carteira.

Abre o guarda-chuva, sai triunfante da estação. A chuva pára. Aparece o sol.

Nem quer imaginar como será seu dia.

Gilson Macedo
Enviado por Gilson Macedo em 24/06/2016
Reeditado em 04/08/2016
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