O tempo não para

“Pois não é que a música que diz que o tempo não para não condiz com a verdade?”

Este era o pensamento daquele funcionário da burocracia daquela repartição pública. Ser funcionário público tem suas vantagens, mas também tem desvantagens! E nosso amigo só consegue enxergar as desvantagens...

Seu chefe é o mais típico exemplo da chatice enlatada num corpo humano. Toda hora pede desempenho, inventam um tal de “balanced score card”, que até agora não faz a menor ideia do que seja, mas em tempos de “gestão pela qualidade” esse troço virou panaceia que enlouquece a todos!

E toca de fazer gráficos coloridos, reuniões de “brainstorming” (tem um mineirinho que chama de “toró de parpite”, que ele acha mais adequado), e demais papéis e cartazes que ninguém lê.

Pois é neste contexto empoeirado e desmotivado que nosso amigo trabalha.

Chega na repartição às oito e meia, colocando a culpa no trem ou na Avenida Brasil – ele nunca acorda tarde.

Vai verificar as tarefas que ficaram pendentes ontem e se surpreende: não completa uma tarefa há mais de seis meses! “Lasque-se, ganho mal mesmo!”

Sente uma vontade de ir tomar um café, levanta-se de sua cadeira, vai lentamente até a mesa do cafezinho que fica muito longe (uns cinco passos) de sua mesa, mas que já justifica uma meia hora no trajeto.

Começa a passear os olhos pela página do jornal na internet, lê e relê as notícias e pensa que já está na hora do almoço e comete seu primeiro confessado erro do dia: eram apenas dez e dez da manhã!

“Meu Deus, que inferno! Tomara que chegue logo o sábado!” Só esqueceu que ainda era segunda – domingo ainda reverberava na sua cabeça, e lhe atormentava a carteira tungada na praia, fora as costas ardidas, os joelhos ralados e as mãos em carne viva.

“Chega o Natal mas não chega a hora do almoço!”

Tenta arrumar o que fazer, mas ao lado só tem uma fofoqueira dos infernos que fala pelos cotovelos e lhe tira a atenção o tempo todo de seu trabalho – trabalho que é um termo muito vago, mas ele insiste em usar o termo, apesar de não ter lido ainda o jornal eletrônico pela quarta vez ainda durante a manhã.

Finalmente chega a hora do almoço. Alvíssaras!

Corre pra Central do Brasil pra comer aquele joelho de queijo (pouquíssimo) e presunto (genérico), baratinho para sua economia, mais aquele refresco radioativo, que brilha mais que césio no escuro.

Começa sua desdita. Mais uma.

Chega no balcão, antes de pedir tem a ideia de procurar nos bolsos quanto tinha e só acha dois reais, pois a carteira estava em algum lugar, deixada por um Don Juan da vida. Não dá nem pra 100 gramas de pão de queijo “a seco”. Dá uma chorada com o português da birosca, o velho se condói e arranca dele a promessa de pagamento no dia seguinte.

O português em pessoa pega o salgado. Nosso amigo observa com olhos de lupa as unhas do “portuga”. Talvez as margens do Canal do Mangue depois de uma enchente fossem mais limpas.

“Jesus, é unha com sujeira comum (como se sujeira fosse algo normal) ou esse cara colocou as mãos em um barril de petróleo após tirar meleca?”

Começa a ânsia de vômito, misturado com a amor-próprio já tão vilipendiado em sua vida de funcionário público. Um gole de refresco de sei-lá – só consegue distinguir que é doce – bem geladinho acalma os olhos pelas lágrimas que lhe vêm aos olhos ao sentir algo crocante no que estava em sua boca.

“Tudo menos barata!”, chorava nosso amigo. Engoliu tudo de qualquer jeito, agradeceu ao portuga que não entendia o porquê das lágrimas – será gratidão? – e foi-se pro trabalho, do qual agora se orgulhava.

Barriga cheia, fome aplacada, lembrou-se que na China insetos podem ser iguarias, e seguiu triunfante. Corajoso ao extremo é como se sentia agora. Senta-se à sua mesa na repartição, lê pela 6ª vez as mesmas notícias do jornal eletrônico, vai até o cafezinho e viva! Acha que já são quase cinco, mas ainda são duas da tarde...

Marasmo, azia, sono, tudo lhe assalta a mente que nem raciocina mais. Uma caixinha de abelhas, vulgo “rádio de camelô”, toca aquelas músicas de consultório médico, a mesma música já repete pela terceira vez só hoje!

A azia se transforma em movimento. O movimento é potencial gerador de sons ritmados ou não. Movimento silencioso é o pior, tem assinatura do emissor. Vai levantar para dar vazão ao pedido de passagem do trem que se aproxima quando forte dor lhe assoma a alma.

Correr com dor na barriga é coisa que nem atleta olímpico faz com perfeição. Tenta correr para o banheiro, mas tal qual mulher com “tailleur” apertado usando salto alto, aprende a correr de joelhos juntos.

Começa a gritaria zombeteira dos colegas da repartição. O banheiro é longe. Uma bolsa de apostas é improvisada, ele vira azarão em questão de segundos.

“Vai que dá!”

“Coloca a mão atrás pra liberar as pernas!”

“Tranca a respiração, mas não tosse!”

Gritos de sarcásticos incentivos o fazem chegar à porta da salvação ainda incólume, mas um passo adentro de banheiro apenas é o estopim de trágica explosão.

O tempo não para, uma ova! São apenas duas e vinte da tarde... não tá tempo de lavar e secar a roupa... nem uma voz o ajuda, mas a gargalhada do lado de fora é estrondosa.

Ele cata sua dignidade ferida, joga água na cara e no corpo e sai às cinco em ponto dali. Rumo à Central pra pegar seu trem, linha auxiliar.

Chega em casa, aperta o botão do elevador. Falta luz. Nove andares o separam de seu apartamento, de fundos, frente pra estação de trem de Olaria. A barriga dói de novo.

Subiu sujo.

A luz voltou. De novo.

Gilson Macedo
Enviado por Gilson Macedo em 22/06/2016
Reeditado em 16/08/2016
Código do texto: T5675376
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