Senilidade.



Um ancião atormentado pela memória fugidia encontrava-se parado diante do caixa eletrônico do banco. Olhava a máquina como quem olha um ser vivo, pois dizia algo a ela. Uma moça bonita como um anjo, vestida de azul-celeste, que a identificava como funcionária da agência, disse: posso ajudá-lo? Ele recusou-se peremptoriamente. Disse não ser um débil mental, e mais: Passei a minha vida pegando boi pelos chifres, portanto, não tenho medo deste bicho insignificante. Atrás dele a fila crescia impacientemente. Alguém disse, tire este velho daqui. A assistente insistiu em ajudá-lo a se decidir, segurando-o pela mão educadamente. Os impacientes procuraram outro caixa, acompanhados por todos e a fila se desfez. O ancião tornou-se usuário exclusivo do equipamento, com o qual continuava um monólogo inverossímil . Algumas pessoas de boa vontade tentaram uma solução, como procurar se havia nas imediações algum parente; outros procuraram a gerência, pois entendiam ser de responsabilidade da empresa um tratamento adequado às pessoas portadoras de necessidades especiais. Quem seria ele? Os mais curiosos ouviam com atenção o que ele dizia com voz rouca: Pau que nasce torto em casa de ferreiro, antes eu fosse marceneiro, mas o pai dizia que o futuro era a forja; profissão boa é a que oferece oportunidade de emprego, filho! Alguém, irritado, chamou a funcionária do banco: socorre aqui meu bem, senão a fila não anda! Novos usuários incautos formavam nova fila no caixa monopolizado. E o idoso continuava conversando com a máquina de vomitar dinheiro. Pernas bambas, trôpegas, falando mesmo com quem? Na rua seria que enxergava semáforos, faróis, calçadas, plantas, carros? Leria letras miúdas das embalagens? Apertou as teclas da máquina e sorriu ao ver a tela mudar de cor. Usou todos os dedos tocando as teclas com delicadeza. Seriam teclas de piano? Acordeom? Seria ele um músico? Senha, a senha! Esqueci. Perdi o sonho, perdi o sono. Moço, o ônibus cento e dois b passou? Eu não enxergo de longe, o motorista não para. Moro na rua Flamboyant. Fica no bairro Eldorado. Ele não sabe, a rua mudou de nome, agora se chama Gilda Maria. Um momento, senhor, vou ajudá-lo a atravessar a Av. João César. Aqui da Caixa até lá é perto, podemos ir a pé, mas moça, todos sabem, idoso não paga passagem, preciso ir buscar a senha. Honestamente achei que ele zombava de mim. Como o senhor se chama, perguntei. Getúlio Vargas foi o melhor presidente, pai dos pobres. Esse aí, o Brizola, não voto nele. Não será igual ao Getúlio, porque... a minha mulher saiu de casa e não voltou. Tenho uma filha nos Estados Unidos. O senhor me conhece? Pediu-me para marcar uma audiência com Getúlio Vargas. Tive ímpetos de dizer-lhe que a agenda do céu estava esgotada. Disse-lhe então, que tanto Getúlio quanto Brizola, morreram. O Presidente da República é o Lula, disse-lhe ao pé do ouvido. Quem é Lula? Falava de coisas passadas. De quando pegava bois pelos chifres; de subir em pés de jatobás; pegar filhotes de pássaro-preto; guiar carros-de-bois, fazer farinha e rapadura. A mulher cuidando da casa, preparando o almoço para os trabalhadores no eito. Na labuta, preparando a terra, para semear os grãos. Moço, o senhor não sabe, mas fiz de tudo nesta vida: Plantei lavoura de toda qualidade: arroz, feijão, café, cana, fumo...(pausa). O fumo, veja só que ironia, foi a minha salvação e de minha família. Eu que nem fumar , fumo. Ainda tive tempo de virar metalúrgico, coisa que eu não queria. Fiz greve, participei de piquetes. Agora eu fico reparando as coisas. O Carlos Lacerda não presta, mas o Alcino, pistoleiro a serviço de Tenório Cavalcanti, não fez o serviço direito. Como pode mirar o peito e acertar o pé? Um ancião longe do presente. Aquele homem, dizia apontando para um lugar qualquer, está de tocaia para me matar. Fiquei pensando como alguém deixa um ancião sair sozinho. Será que tem filhos mesmo?. Agarrou-me pelo braço e pediu-me proteção contra o assassino imaginário. O que fazer? Eu estava atrasado para o trabalho. Enfiei a mão em seu bolso e encontrei alguns documentos embrulhados em papel-plástico: um cartão magnético da Caixa, apagado, título de eleitor e identidade ilegíveis. Procurava o número de um telefone. Avisar algum parente do paradeiro do idoso. Que situação! Olhei de um lado a outro, nenhum sinal de alguém que o conhecesse. Melhor chamar a polícia. Não, por enquanto não. A polícia está sobrecarregada, ganhando mal. O que eu tenho com isso? O velho decidiu não soltar o meu braço. Pedia: aquele homem quer me matar, vamos embora pra casa. Onde o senhor mora? Perguntei por perguntar. Já sei, rua Flamboyant. Mas e o número? O jeito é ir à rua e bater de porta em porta. Ela não é tão grande. Agora sim, perdi o compromisso. Com todo respeito à polícia, eu mesmo vou resolver esse caso. Não posso deixá-lo aqui. Vamos pensar: ligo e cancelo o compromisso? Como é mesmo o nome do senhor? Ah meu filho! É Zé. Não consigo ler, José Fr...co d. Ican... Preciso do nome completo. Ela se chamava Maria Madalena, era linda, uma cigana... Quando soube que eu era casado, ela se desatinou. Porque eu era danado, um rabo-de-saia, mas abandonar minha Filó, nem pensar, só a morte nos separaria e Madá não teve forças de suportar o tranco. Foi triste. Estava toda desfigurada, não era a minha cigana fogosa, ainda assim, tinha brilho os seus olhos. Na hora do enterro fiquei firme, segurei a dor, mas no terceiro dia, montei no meu alazão e o deixei ir aonde quisesse. Conhecedor de minha tristeza, ele me levou ao local mais solitário que podia existir: O Vale das Lágrimas. Lá eu chorei lágrimas de sangue, porque a ausência de Madalena acabou comigo. Era e ainda é uma dor difícil de avaliar. Se é que o senhor entende a dor da perda de um grande amor. Madalena queria que eu largasse Filomena e isso eu não podia, por causa dos compromissos feito com Deus, com as bençãos do Padre Josué.
   Nesta altura eu estava decidido e até sossegado. O dia prometia. Peguei-o pelo braço e saímos andando pela Av. João César de Oliveira, ele falando da cigana, de Filomena, de tocaias. Eu me sentia cansado da rotina de compromissos inúteis, infeliz em um trabalho de Sísifo. À merda tudo isso. Tirei o dia para ficar por conta do velho e de suas histórias inverossímeis. Chegamos ao Parque Ecológico Eldorado, ele olhando como se nada daquilo constituísse novidades. Tentei contar-lhe como o povo se mobilizara para transformar aquela área degradada em um parque, falei do Conviverde, de ambientalistas, do conselho de meio ambiente, mas ele não me ouviu. Sabe meu filho, certa noite eu acordei com um barulho esquisito vindo do curral. Peguei a lanterna, o revólver e saí para ver o que era. Os bezerros estavam agitados, as galinhas também. Mas nada que suspeitasse de onça pintada. Porque se fosse onça, o barulho no chiqueiro seria enorme. Desconfiei de ladrão de cavalo. O Zé Marcolino tinha sido preso várias vezes por roubo de cavalo. A polícia e os bate-paus não tinham piedade. Havia denúncia de roubo de cavalo, Zé Marcolino caía no couro. Às vezes nem era ele. Mas sabe como é: fez fama, ganhou a cama. O ancião só retomava o rumo da história, depois de eu dizer-lhe que o causo carecia de um final. - Aí eu fui até o pasto, não vejo a mula ruana e ouço passos leves: era ela sendo levada. Vou seguindo aquele pisar que conheço bem, quando dou de frente com o ladrão. Aponto o revólver e digo solta esta mula, porque ela tem dono e você está preso, em nome da lei! Nesta hora, não sei o que me deu, quando vi tinha apertado o gatilho. Notei que eu não tinha preparo para essas coisas. Polícia e bate-pau não perdem o controle. Quando disparei a arma, o estranho saiu correndo. Não era o Zé Marcolino, porque ele eu conheço bem. Até fez uns serviços para mim. Recuperei, mas a dor de ter tirado a vida de alguém não me deu sossego, mesmo sendo um ladrão. Não sei se morreu, nem sei quem era. Conheço os mandamentos e não matarás é o terceiro. Não dei conta de viver naquele mudéu de tanta tristeza e vim pra cidade grande. Ser metalúrgico era o desejo de todos. Trabalhar na Mannesmann ou na Belgo-Mineira era como ganhar na loteria. Eu sou contra esse trem de greve, mas não ia trair meus companheiros. Isso nunca. Você viu meu filho por aí? Não, respondi, como ele se chama? Seu Zé entrou em novos devaneios. A pior coisa, no meu modo de entender é a ingratidão. Quando tomo meu café de manhã, agradeço a Deus e às pessoas que trabalharam sol-a-sol, para eu me alimentar. No almoço e no jantar eu agradeço. Ao dormir agradeço os carpinteiros que fizeram a cama, os fabricantes de colchões e cobertores. A vida é uma dádiva, entretanto, como tem gente que reclama de tudo. Olha esta beleza! Como não agradecer a quem construiu este banco? As flores, maravilhas da natureza. Não quero saber de violência. Pode haver ingratidão maior, que a prática de violência? Vamos falar de coisas lindas, tem tanta gente fazendo o bem! Não sou nenhum santo, também fiz as minhas maldades... Nesse momento o idoso parou de falar. Respeitei o seu silêncio, imaginando o que ele estaria pensando. Também me pus a pensar em minhas crueldades. Magoei muitas pessoas. Jurei não colocar filhos no mundo. Para quê? Para vê-los sofrer? Só vejo violência e ódio. Competição, sadismo. Estou aqui ouvindo a lenga-lenga deste velho, vai ver foi um grande filho da puta. Fiquei sem saber o que fazer ao vê-lo se debulhando em lágrimas. Acariciei os seus cabelos, em seguida pousei sua cabeça sobre meu ombro.
   Decidi, como planejara, ir à R. Gilda Maria e bater de porta em porta. Não demoramos muito encontrar a casa de "seu"..., até porque ele era bastante conhecido na rua. Depois dos agradecimentos e das apresentações, fui convidado a tomar um café. Pedro, o filho, contou-me que o pai passa a maior parte do tempo no Sítio Paraíso, um pedacinho de terra que temos em Taquaraçu de Minas. É viúvo e às vezes a gente precisa trazê-lo em Contagem, para passear, ir ao médico e ele desaparece. Por falar nisso, preciso ligar pra polícia, avisando que o encontramos. Não sabemos como agradecê-lo, disse-me Clara, esposa de Pedro. Respondi ter sido um prazer, afinal aprendi muito com ele e acabei conhecendo pessoas interessantes.
   Antes de me despedir trocamos o número de nossos celulares, endereços eletrônicos, para nos comunicarmos e estreitarmos os laços de amizade. Alguns meses depois eles me convidaram a um passeio ao Sítio Paraíso.
   Eu estava levando a vida muito a sério, rigoroso demais comigo, muitas cobranças, um peso enorme nas costas. As visitas ao sítio e os causos de Seu Zé Francisco me acalmavam. Em um dia de lucidez ele me disse: Vou ser sincero com você, meu filho, tenho momentos de muita tristeza, sim! Solidão não presta; amei e fui amado; ainda penso arranjar um novo amor, para passar o resto de meus dias cuidando de orquídeas, bromélias e uma horta de couves, cebolinhas e uns pés de alface. Só para passar o tempo, quero saber de trabalho não. Carreguei muitos fardos. Fui jogando tudo fora, carrego apenas a roupa do corpo. Vamos deixar de lado as preocupações, a raiva, a mágoa, os rancores. Assim a vida fica mais leve. O dia está tão bonito. Aposto que você trabalha obrigado, enfrentando uma rotina chata.
Fiquei pensando em suas palavras. Pouco tempo depois pedi demissão da empresa e comprei uma chácara ao lado do Paraíso. Pude então realizar um sonho antigo: Pintar as minhas telas e vendê-las. Havia tempo para ouvir os causos do cada vez mais senil, o Seu Zé Francisco. Às vezes o via andando com passos trôpegos pelo sítio, apalpando folhas e flores e as levando próximas aos olhos. Ele me inspirou uma tela, que não está à venda e estes singelos versos:
 
o coração não bate
com o mesmo vigor
a face tem outra cor

ao erguer-se da cadeira
contorce-se de dor

a visão está turva
não separa folha da flor

seus direitos fundamentais
tornaram-se banais

não se humilha mais
com seus atos fecais

os pruridos morais
ficaram para trás

os pés não movem
com a antiga pressa
há rugas espessas...


Esta crônica está em meu livro Filhos da Terra - Edição do Autor - Esgotado Autor - 2009


LIVRO, UM PRESENTE INTELIGENTE!

Imagem: jef - meu pai (em memória), em Esmeraldas-MG