DIA DE LIBERTAÇÃO

Acordo às cinco da manhã imerso na inebriante lembrança de um sonho envolvente que suscitou as mais delirantes fantasias e emoções que um homem solitário e infeliz pode ter após uma noite mal dormida. Levanto-me cambaleante indeciso e sem rumo. A mente em turbilhão exige uma atitude digna e coerente com a gravidade da situação. A paz realmente me abandonou. Que vontade de dormir novamente e retornar àquele colorido mundo de sonhos carregado de sensações agradáveis. Mas a desordem mental do momento não permite devaneios e recoloca-me no devido lugar. Preciso pensar em algo a ser feito antes de ser tarde demais. Preciso agir.

Decido tomar um banho quente. Enquanto a água levemente aquecida escorre pelo meu corpo fico a pensar: Que fazer? Minha vida está em rota de colisão comigo mesmo. Tudo que faço dá errado. Culpam-me pela ruína comercial de meus empreendimentos, evidenciado nos equívocos e na incapacidade de tomar decisões. Vivo um inferno astral. Preciso libertar-me dessa opressão. De olhos fechados, sentindo as gotas deslizarem suavemente sobre meu rosto, brota em minha mente um “vídeo tape” das últimas ações. Vejo claramente a trajetória desastrosa de erros que desencadeou o caos em que me encontro agora. Será que Deus me abandonou? Há anos não faço uma oração. Quando estive pela última vez em um templo? Talvez há uma década cumprindo algum compromisso social. Vislumbra-me, então, uma ideia: Vou à igreja. Não. Esse infiel servo precisa de uma atitude mais arrojada: Não vou a uma igreja apenas, vou a todas que encontrar aberta neste domingo para compensar minha omissão.

Já na rua, visualizo suntuosa Catedral a retumbar os sinos, chamando seus fiéis à missa. Assisto-a, com sua liturgia, seus cânticos e o velho sermão do sacerdote. Fala-me da necessidade da caridade, do amor ao próximo, e do desprendimento dos bens terrenos, dando ênfase à prática do dízimo consciente. Não tenho praticado nenhuma das três virtudes acima, mas fiz uma oferta consciente à coleta da igreja, na tentativa de me redimir com Deus.

De volta à rua, caminhando ladeira abaixo e sem direção, percebo ao longe uma aglomeração em frente a um templo Protestante. Talvez ali encontre o que procuro. Aproximo e adentro seus altos pórticos de formato oval, aparentando arquitetura gótica, denotando luxo e ostentação. Rapidamente solícito e alegre obreiro me conduz a confortáveis assentos almofadados. Sinto-me envolvido por estranha sensação de euforia e temor. Após estridente apresentação de conjunto musical desafinado e sem ritmo, o pastor apresenta-se diante do púlpito, imponente e soberano, iniciando sua preleção de forma enérgica e impositiva, gritando: “Em nome do Senhor Jesus”. Em seguida, ao ler versículos do Velho Testamento que enaltece a subserviência de Jó, procura dar-lhes mais veracidade, afirmando sê-los de autoria Divina, no claro propósito de persuadir seus fieis a serem submissos e dóceis mesmo diante das adversidades da vida, pois Deus pode estar testando sua fé. Fala durante duas horas, sem que eu possa concatenar suas ideias. Seu discurso sem nexo não me transmite nenhuma mensagem consoladora que possa aliviar ou amenizar meu sofrimento, apenas me encurrala num labirinto de abominações, injúrias e culpas. Sinto-me oprimido por um Deus vingativo e rancoroso e acuado por um demônio astuto, envolvente e quase irresistível. Como irresistível também é a persistência em convencer-nos a colaborar com a obra do Senhor. Assim, ofereço minha generosa oferta a esse abnegado exército da salvação, acreditando na possibilidade do Senhor me conceder também um pouco de prosperidade.

Deixo o templo numa dúvida que não quer calar: se Deus faz ou permite que façam com seu rebanho o que fez com Jó, então o que será de mim?

Caminho agora na periferia da cidade. Surpreendo-me ao perceber que existe em cada esquina um templo e um bar. Estaria o Senhor perdendo pra concorrência? Penso que, se a religião redime e regenera o pecador, a criminalidade deveria reduzir na mesma proporção do surgimento desses templos.

Observando a simplicidade de humilde e tosco templo religioso, avanço em direção ao seu interior na ânsia de encontrar alívio a essa angústia. Talvez ali, diante daquela total ausência de luxo e requinte eu consiga libertar-me do peso que repousa sobre meus ombros. A irmã que prega no momento despeja uma longa e chorosa lamentação, implorando a benevolência Divina. Em voz alta, todos oram ao mesmo tempo, provocando ensurdecedora balburdia que é a marca registrada dos Pentecostais. A baixa escolaridade da oradora limita seu raciocínio, levando-a a cometer verdadeiro pecado contra a língua Portuguesa. Seu discurso carregado de velhos bordões induz a plateia a repeti-los em voz alta. O teor de sua pregação enaltece apenas o poder do milagre. Todo sofrimento, por maior que seja, pode ser aliviado pela fé. A fé que remove montanhas. Deus tem um plano pra cada ser humano, mas é preciso crer. A fé cega é o principal requisito para obtenção da benção. Os milagres anunciados são fantásticos ou fantasiosos, pois envolvem curas improváveis e facilmente questionadas, baseadas apenas em testemunhos mal fundamentados e sem comprovação científica. No final, a oradora me convence da necessidade de contribuir para a obra do senhor, pois é preciso pagar água, energia, a limpeza, os tributos e o salário dela, a pastora. Vendo a total pobreza do recinto, sinto uma incontrolável vontade de doar o suficiente para amenizar, ao menos temporariamente, a dificuldade daqueles marginalizados representantes de Deus, e quiçá Ele também possa aliviar o peso desse meu fardo.

Cansado da ausência de cultura e boas maneiras, retomo minha caminhada em busca de uma palavra amiga que não me condene nem me julgue por meus erros, mas reconforte minha angústia e suavize um pouco essa depressiva sensação de impotência.

Dirijo minha atenção agora para algo inusitado. Estou em frente a um Centro Espírita. O que existe por trás daquelas paredes? Será que posso encontrar ali minha libertação? O que os espíritos podem oferecer aos humanos? Existe mesmo a imortalidade da alma? A vida continua após a morte? São muitos os questionamentos. Preciso tirar algumas dúvidas. Quero participar dessa sessão. Após trinta minutos de palestra, abordando o tema “Fora da caridade não há salvação”, pequeno grupo se aglomera em conversa informal no final da reunião, quando me aproximo como mero observador. Fala-se da existência de uma cidade um pouco acima no espaço, idêntica a nossa, destinada apenas aos que nesta vida praticaram o bem, e que, muito provavelmente após a morte, pessoas como eu, egoístas, materialistas, orgulhosas e soberbas, não viverão lá, pois essas imperfeições de origem nas vidas passadas condenam-me a sofrer nesta existência todas as tribulações consequentes de meus atos em existências anteriores. Não poderei habitar a cidade dos eleitos. Serei degredado a um lugar chamado Umbral, de muito choro e ranger de dentes. - Será que as presas, caninos e molares continuarão me causando dores, no mundo espiritual? Preciso ir urgentemente ao dentista - Nessa conversa descontraída vendem de tudo. Pizzas, lasanhas, bobós, massas caseiras, etc. São para custear as despesas de manutenção da Instituição, diz um dos dirigentes. Saio com os bolsos cheios de cupons, vales e convites que darão direito a pratos e guloseimas as mais variadas possíveis. Talvez esse ato caridoso possa me render alguma benesse do Senhor.

Começa a anoitecer e ainda não me alimentei. Bebi apenas da “água viva” do Senhor, que não saciou minha sede, nem aliviou minha dor. Descobri que a peregrinação foi-me útil. Vejo claramente agora que devo retomar as rédeas da minha vida e enfrentar as dificuldades, buscando resolvê-las através do trabalho, da determinação e da fé na minha capacidade de encontrar soluções. O Senhor não moverá a montanha à minha frente e para transpô-la, preciso construir meu próprio caminho, mesmo que para isso tenha de engolir meu orgulho e recomeçar a peregrinação lá do princípio, quando a fama e a notoriedade não passavam de uma quimera.

Cansado, decido voltar ao recanto domiciliar e traçar uma estratégia de enfrentamento da crise para o dia seguinte. Quarenta minutos depois, abro a porta e deparo-me novamente com a solidão. Sinto fome. Na cozinha a desordem é catastrófica. Louça para lavar, despensa vazia e geladeira desligada. Não há nada para se alimentar dignamente. Vou ao telefone e ligo a uma Cozinha delivery, solicitando o envio de uma refeição expressa, quando repentinamente tenho uma grata surpresa: Consegui me libertar! Graças a Deus me libertei. Estou me sentido leve como uma pluma. Minha carteira está vazia. Libertei-me de todo dinheiro que possuía, ao sair de casa hoje de manhã...

Genézio de Abreu Martins
Enviado por Genézio de Abreu Martins em 28/05/2016
Código do texto: T5649300
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