O CHEIRO DA VIDA

Já perceberam o quanto a rotina de cada dia acorrenta nossa atenção às tarefas, aos compromissos, procedimentos de praxe, impedindo que usufruamos as delícias naturais dos sentidos, em relação ao que nos envolve?

Quando, eventualmente, vamos a uma praia, um recanto campestre, uma cidadezinha do interior ou local montanhoso, costumamos inspirar o ar local com mais intensidade, olhar as particularidades do ambiente com interesse, ouvir pássaros, ruídos característicos, extasiados com sons, que nos parecem incomuns e exóticos, sentir odores variados, que nos remetem à infância ou algo que tenha a impulsividade nostálgica que ela representa.

Quantos já me disseram despertar de mau humor, começar o dia com desânimo e ter de tomar um gole de café forte para encarar a labuta? O foco sempre está no trabalho, deveres, serviços usuais e diários, e de tal modo mergulhamos nessa roda viva de funções, que toda a realidade estrutural que nos cerca e sustenta fica ignorada, como se fosse fundo esmaecido de peça teatral, em que apenas a presença dos atores e sua performance é o que importa.

Há quem durma e desperte com rádio ou televisor ligado, queira ler o jornal antes de seu desjejum matinal (se e quando há ingestão de alimentos nessa hora) ou acesse seu telefone, para atualizar mensagens e variados assuntos. E a engrenagem de atividades não para.

Espere um pouco! Pára, sim. Por morte, doença, acidente ou outro imprevisto qualquer.

Quando isso acontece, o baque é grande, para quem sofre e os que lhe são próximos.

E o que vem depois?

Se alguém morre, deixa estremecidos os que lhe dedicavam afeto e consideração.

Se há trauma, vítimas e circunstantes são afetados, em diferentes níveis de intensidade.

Se há perda, o desespero e a desolação oprimem os atingidos, travando o raciocínio.

Se há sofrimento, sofrem todos, assistidos e assistentes, perturbando os sentidos.

Se advém a pobreza, grande sensação de impotência domina o quadro mental.

Porém, tais situações de dor não representam um fim ou continuidade, mas apenas um recomeço. Embora muitos se entreguem aos padecimentos, cultivando auto-piedade, querendo estacionar na vitimização, e ainda que hajam casos graves em que seja difícil reagir, todas as ocorrências que permeiam nossa existência têm a finalidade de ativar ou desativar algo no imo, no recanto mais fundo de nossa essência. Ignorar o objetivo faz parte do processo.

A natureza pode estancar nossas atividades, travar nossa movimentação, embaralhar nossa percepção, apenas para nos fazer atentar aos detalhes importantes da vida.

Se levarmos em conta a quantidade de doenças, catástrofes naturais, violência, traumas e acidentes, que nos acometem ou podem acometer, dia a dia, minuto a minuto, é possível ter a visão clara de quão frágil é a condição que usufruímos no planeta. Mesmo assim bebemos, fumamos, drogamo-nos, comemos muita besteira e praticamos todo tipo de excesso, até que a providência natural nos dê um “basta”. Aí vem a fase dos choros e lamentações.

Somos levados a crer que temos de correr, competir, fazer carreira, adquirir patrimônio e conquistar status, e todo o resto tem de se submeter a essas prioridades. No entanto, são os lugares calmos, de natureza exuberante e pouco ou nenhum desenvolvimento urbano, que têm atrativos para o tempo de descanso, quando buscamos o prazer no desligamento da atividade, das notícias, do corre-corre costumeiro. Relaxamos então, e descalçamos os pés.

Muitas vezes, nem o ambiente natural proporciona a devida ponderação, e muitos de nós, em meio a um cenário paradisíaco, perdem-se em comilanças tenebrosas, excessos de todo tipo, festas e agitações, sem sequer tentar se entrosar com a harmonia natural em redor.

Olhar o mar, o campo, as grandes paisagens ou minúcias pitorescas, aproveitar o calor ou frio com adequação e criatividade, acompanhar mudanças climáticas e entender como tudo funciona, sem que a mão do homem interfira, são apenas algumas das muitas necessidades que temos, e não entendemos, de interagir com o meio em que vivemos,e aprender a subsistir.

Já não sabemos mais como viver sem água encanada, energia elétrica, supermercado, televisão, telefone e outros aparatos de suporte social. Dependemos, totalmente, do rotineiro funcionamento de tudo isso, para nossa sobrevivência, o que é, no mínimo, patético.

Em todos os filmes de ficção científica, os seres alienígenas que vêm ao nosso mundo, são mais capacitados, mais dotados e, mesmo em dificuldades, se garantem bem, enquanto nós, os donos da casa, não conseguimos nem mesmo sentir direito o cheiro da vida.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 14/05/2016
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