Do menino com olhos vesgos de poesia

“Há um menino

Há um moleque

Morando sempre no meu coração

Toda vez que o adulto balança

Ele vem pra me dar a mão”

(Bola de meia, bolda de gude, Milton Nascimento)

Aos cinco, seis anos de idade (as pupilas da memória falham na exatidão, vezenquando), um menino aguardava os estalos do pão quente saindo do forno. Tal menino morava numa pequena cidade do interior, cidade-aldeia de espaços amplos que permitiam o folgar da poesia com as flores, as árvores, as pedras, a água de pequenos fluidos de alegria. Ouviu-se uma buzina em frente à sua casa. Mais do que de pressa, o menino dirigiu-se para a entrada de sua casa, tomou o caminho das escadas, esteve na rua feita de pedras pontiagudas (dizem que fruto do trabalho de negros daquela cidade). Um carro, um senhor conhecido, professor aposentado, marido de uma professora, pai de uma professora.

O menino recebera uma pasta do senhor de suspensórios e de boina na cabeça. O que haveria naquela pasta pretinha como as jabuticabas que o menino colhia no quintal de sua casa? Havia, soube mais tarde, o futuro do menino, guardado em livros, folhas matriciais e desenhos para colorir. No restante daquele dia, o menino, juntamente com sua amiga laranjeira pensou, pensou, pensou: eu quero ser professor.

Nos dias que se seguiram, o menino procurou tijolos e madeira; roubou a mesa verde de jogo de futebol de botão (posse de seu irmão mais velho). Embaixo de uma escadaria, construiu classes e cadeiras com o material encontrado, e um quadro negro com a mesa de jogo de futebol de botão de seu irmão mais velho. Ele tinha uma escola, finalmente. Convocou as crianças mais novas de sua rua a serem suas alunas. Crianças que ainda não frequentavam a escola da cidade. Alfabetizou-as. O menino, que aos dois anos de idade havia perdido quase que completamente a visão do olho esquerdo em um acidente, ficando um pouco vesgo, agora, podia ver seu futuro embaixo de uma escadaria. Mal sabia aquele senhor de suspensórios e de boina na cabeça, que havia mudado para sempre o destino do menino que conversava com sua amiga laranjeira todas as tardes.

Dos seis aos doze anos, o menino aquele ensinou para diferentes crianças, em locais também diferentes. Na cidadezinha, brotavam comentários acerca do menino-professor. Foi até notícia de um jornal local (ah, queria encontrar o recorte da notícia que se perdeu com o tempo). Em um domingo, o pai do menino, com sua ajuda, construiu uma casinha de madeira que fora a sede de sua escola por algum tempo. Alguns professores do menino faziam cópias com matrizes para ele entregar aos seus alunos. Fico a pensar: será que hoje em dia, vocês sabem o que são folhas de matriz?

Onde estaria esse menino-professor atualmente? Um passarinho azul contou-me que um certo Tio Remus contava a história desse menino por aí, e que a continuação dessa história é a seguinte:

O menino-professor tornou-se um leitor voraz de literatura e com a ajuda da biblioteca particular de uma professora falecida de sua cidadezinha devorava livros junto da luz amarelada de seu quarto todas as noites. Tio Remus também conta que o menino-professor começou a ficar muito melancólico quando algumas pessoas da sua cidade achavam-no estranho por ler demais. É que ler demais é perigoso, pois acaba tornando as pessoas mais curiosas em desvendar os segredos do mundo. Tio Remus, sentado em frente de uma lareira, contava ainda, que o menino-professor tornou-se burocraticamente um professor.

Não sei ao certo se isso é somente uma história do Tio Remus, ou se esse menino existe de verdade, mas posso garantir que o final dessa história depende muito de alguns alunos, para os quais, disse Tio Remus, o menino tem dado aulas e sonhado em torná-los apaixonados pela leitura.