O insone

Ele acorda pontualmente às duas da manhã, mas não é pra trabalhar. Simplesmente o sono se foi.

Acorda sem razão, apesar de ter deitado depois das 22, não terminou nem de ver o jogo de seu Flamengo, de tão cansado que estava. Olha pela janela, só vê a movimentação do nada, não venta, nunca passa uma pessoa solitária distraída, como se estivesse “singing in the rain” apesar de não estar chovendo, andando no afã solerte de chegar em casa, na mesma medida em que seu sono nem dá sinal de vida.

Sem saber o porquê, vem uma música à cabeça que ele nem desconfia do motivo do surgimento desta, e a música acaba virando solitário chiclete na cabeça daquele insone que teima em não dormir. Mil pensamentos tentam lhe povoar a mente, porém eles mais parecem uma revoada de pombos que nada acrescenta ao ambiente, senão poluição sonora, penas e mais sujeira que possam produzir.

E qual pombo solitário (e burro), sentado abraçado aos joelhos, ele se pergunta o porquê desta inércia na cama, pois que já levantou, foi ao banheiro, à janela, mas não ligou a luz para ler um livro nem ligou a televisão para assistir algo inútil, tudo para não acordar a esposa que ressona gostosamente ao seu lado.

Inveja do ressonar daquela nojenta. E, para piorar o desespero, olha pro relógio e vê que são três da manhã ainda. Palavrões em profusão inundam a mente do vigilante insone.

Mentalmente, se coloca na posição de incrédulo, pois nada lhe faz sequer os olhos arderem de sono, nada! Carneiros, já não conta mais, pois já está até lhes sentindo o cheiro desagradável, de tanta intimidade que ganhou junto aos pobres e morrinhentos animais! Aliás, os animais já começam a pular de mau humor, uns ensaiam uma greve reivindicando melhores condições de trabalho, com plano veterinário e vale-capim, pois que são obrigados a andar, pular, e nada do sono dele vir...

De vez em quando, aquela modorra, que mais parece que não dormiu xongas, mas quem é ele para saber se dormiu realmente ou se era sonho aquela situação acordada sentado na cama abraçado aos joelhos sentindo inveja daquela mulher a ressonar gostosamente? Aí bate aquela vontade de dar um cutucão na mulher, aquela nojenta, só pra ver um ser humano se mexer.

Um cachorro late, ô miserável! “Cala a boca, diaaaaaaaboooooo!”, grita ele mentalmente entre os dentes cerrados. E ele, que acreditava que conseguiria dormir, passa a ter a certeza de que cachorro tem parte com o demo! Um late, o do vizinho late, e outro e outro e outro, daqui a pouco todo mundo uivando, parece concurso de uivos ou então aqueles nojentos estão cantando todos juntos ou então entoando um grito de torcidas canino, “ei, você aí, não adianta ‘tu’ não vai poder dormir!”

Aí, já são quatro e meia, e o despertador vai tocar às cinco, e o desespero toma conta do miserável insone, que sua de nervoso. “Eu vou dormir de qualquer jeito!”, se ilude.

E o desgraçado do despertador toca, justamente quando ele começava a sentir sono. Trabalhador que é, levanta, banheiro, roupas, rápida ingestão do que encontra na geladeira à mão, e rua.

E dorme no ônibus a caminho do trabalho, mas só ao final do trajeto de uma hora e meia consegue esta façanha, mas aí perde o ponto, tem que caminhar mais e se atrasa pro trabalho.

Ô, vida.

Gilson Macedo
Enviado por Gilson Macedo em 14/04/2016
Reeditado em 27/06/2016
Código do texto: T5604890
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