MALFEITOR
Reunido com alguns amigos em minha casa num domingo, enquanto a carne assava na churrasqueira, debatíamos sobre a atual situação política do Brasil, regado a uma boa cerveja e ao som do velho rock nacional. O assunto corrupção e impeachment dominavam entre os interlocutores. Aleatoriamente formaram-se dois grupos na polêmica, um contra e outro a favor. Discussões acaloradas e entusiásticas de ambos os lados fluíam naturalmente ao sabor da picanha servida nas mesas. O teor do debate girava em torno dos reflexos negativos ou positivos que o impeachment poderia provocar na economia do País. Felix e Heitor, um Cristão e o outro ateu, eram os que mais agitavam o debate, não permitindo que a contenda perdesse força. Esgotados pelo cansaço e pela ausência de unanimidade de pensamento, Félix, o Cristão conduz a discussão para o campo da religião, afirmando que todo político corrupto é passível de perdão, pois ele pode se redimir de seu erro, pagar pelo seu crime e se regenerar. O ser humano é imperfeito e todos cometem erros. O que qualifica o malfeitor é a persistência no erro, porém haverá uma porta sempre aberta a ele se por vontade própria desejar a regeneração. Félix então pergunta a Heitor, o ateu:
- Deve-se expor a vida para salvar um malfeitor?
- Sim, deve-se colocar em risco a própria vida para salvá-lo, afinal é um ser humano e tem todo direito de viver. Não foi assim que lhe ensinaram nas aulas de religião? Não lhe disseram que ele poderia até se redimir após o salvamento?
- Mas não gostaria de submeter-me à missão tão inglória. Temo que minha indiferença deixe a natureza naturalmente seguir seu curso.
- Mas a natureza atua mesmo quando se acredita que o agente é você. Deixá-lo perecer ou salvá-lo apenas antecipará ou prorrogará o destino final desse ser biológico que está fadado à morte. A rotatividade natural do ciclo da vida determina o tempo de existência de cada ser vivo no planeta, porém o malfeitor é especial e precisa ser preservado.
- Não entendi.
- É preciso salvá-lo para o próprio bem da sociedade.
- Agora sim, não entendi mesmo. Como pode um malfeitor ser bom para as pessoas?
- É bom para a manutenção do “sistema”.
- Só se for o sistema prisional.
- Também.
- Como assim: também? Existem outros beneficiários do malfeitor?
- Sim. As subdivisões do sistema. O legislativo, o judiciário, os tribunais, as instituições, a política, a educação, o fisco, a segurança pública, a saúde e até mesmo as religiões.
- Você está maluco? De onde tirou essas conclusões? De algum “pasquim”?
- Não. Não estou maluco. É a pura verdade.
- Não posso acreditar que a religião precisa do malfeitor. Essa é a maior heresia que já ouvi.
- É necessário para equilibrar as forças do bem com o mal. Se retirarmos os malfeitores do contexto doutrinário das religiões, ela ruirá, pois o bem tão-somente não se mantém e não se sustenta.
- Agora pirei de vez. O bem não se manter sozinho, é pra acabar.
- Não subsiste, e os evangelhos provam, estando recheados de maldade. Para que o ser humano valorize o bem ele precisa sofrer a intervenção do mal em sua vida. O mal nem sempre age sozinho, e aí então, aparece a ação do malfeitor. Retiremos os malfeitores do desfecho histórico do Cristo e ele não passaria de simples mortal. Sua saga só perdurou por milênios devido à diligente atuação dos malfeitores. A Bíblia sem as maldades e os malfeitores ficaria totalmente sem sentido. Em Gênesis, Deus cria Adão e Eva, que geram dois filhos, Abel e Caim, e logo em seguida, o primeiro homicídio. O bem e a bondade, somente, não conseguem despertar interesses nem paixões. Ao perdão antecede a ofensa. É preciso mesclar o bem com o mal para revolver as emoções e os sentimentos da humanidade.
- Então Jesus não seria “o Cristo” sem Judas Iscariotes?
- Exatamente. Seria apenas Jesus, um homem comum, interrogado e condenado pelo Sinédrio, um tribunal judaico e sentenciado à morte pelo governador Pôncio Pilatos.
- Então Judas não é o único malfeitor?
- Não. São inumeráveis. O malfeitor que mais se destaca no Cristianismo é o eficiente “satanás”. Ele mantém boa parte dos fiéis dentro da seara do Senhor, apenas com sua fama.
- Cruz credo. Vade retro, satanás. Sangue de Jesus tem poder.
- Calma, não tenha medo. Não precisa se benzer. Ele não te fará mal, apenas te amedrontará se acreditar nele.
- Prefiro não correr risco. Mas, e o sistema? Como pode explicar?
- O Congresso Nacional, o Ministério da Justiça, a Secretaria de Segurança Pública, a Polícia Federal, a Guarda Nacional, precisam do Malfeitor. O setor privado como empresas de segurança física e patrimonial e a indústria de produtos eletrônicos como câmeras, sensores e alarmes também.
- Estou atônito. Ainda não consigo aceitar essa teoria.
- Não é teoria. É o nosso “Reality Show”.
- As fábricas de uniformes para penitenciárias e policiais, os restaurantes que produzem as quentinhas, as empreiteiras da construção civil, as transportadoras, as empresas de informática, a telefonia, etc.
O advogado, o policial, o defensor, o juiz e o carcereiro, exemplificam os que são diretamente beneficiados, porém, toda a sociedade, direta ou indiretamente beneficia-se do mesmo. Ele é tão necessário que existe todo um aparelhamento criado exclusivamente para atendê-lo. E é mais operante que qualquer outro setor, como a saúde, a educação e a moradia. Nós temos a Constituição, eles têm o código penal. Instituições como fóruns, delegacias, presídios, tribunais com seus ministros, desembargadores e juízes estão disponíveis para atender prontamente e sem distinção, qualquer necessidade do malfeitor. Já o cidadão comum, se ficar doente, precisará de muita paciência para ser atendido. E veja bem: estou falando de vidas humanas e não de habeas corpus.
- E o engenheiro, o lojista, o gráfico, o fisioterapeuta?
- O malfeitor está em toda parte. No setor público quanto no privado, na ciência quanto na religião, na política quanto no cidadão comum. A que mais produz malfeitores é a corrupção. Ela está arraigada no seio da sociedade de forma tão sutil, que fica difícil acreditar na honestidade das pessoas. Porém, o produto da corrupção contínua fomenta diariamente o consumo e a produção de bens e serviços, contribuindo de certa forma para a circulação da moeda no País.
Por alguns segundos Félix se cala. A argumentação de Heitor o deixa cabisbaixo e pensativo. Subitamente levanta a cabeça e diz:
- Então, preciso correr.
- Correr? Por quê?
- Para proteger meu vizinho.
- Seu vizinho?
- Sim, um velho conhecido da justiça.
-Algum funcionário do judiciário? Ele está mal?
- Não. Ele está em prisão domiciliar, após cumprir alguns anos em regime fechado, por aplicar golpes no sistema financeiro...
- Ou seja, um ladrão.
- Não. Segundo seu raciocínio, apenas um malfeitor que precisa ter a vida preservada para o bem do sistema...