A CILADA DAS CRENDICES E SUPERSTIÇÕES

No dia 15 de janeiro de 1977 embarco num comboio de onze ônibus com destino ao quartel na cidade de Bela Vista. Convocado para servir à Pátria, partimos de Dourados às 11 horas, passando por Ponta Porã e Antônio João, chegando ao destino às 20 horas, após superar alguns contratempos viajando numa estrada de terra esburacada pelos atoleiros dos caminhões nos dias chuvosos.

A vida na caserna não era de meu agrado. Nunca tive a menor vocação para o serviço militar. Foi o ano mais longo de minha vida. Mesmo contrariado e a contragosto, consegui adaptar-me à rotina disciplinar dos militares. Verdadeira tortura para meu ego. Criado e educado sob a rígida orientação religiosa de uma família humilde, sem cultura e muito apegada a crendices, tive dificuldades em conciliar o treinamento para matar nos exercícios de guerra, com os princípios evangélicos dos Dez Mandamentos que ensinavam a amar o próximo.

A lembrança da família e dos amigos entristecia-me e as esparsas dispensas para visita-los aumentava a saudade. Não estando escalado para serviço no final da semana, associava-me a outros soldados e viajava de “carona” para casa, sem licença do quartel. Na sexta-feira após o expediente, partia com destino a Jardim, passando por Guia Lopes, Maracaju e Itaporã. A distância mais curta por Ponta Porã tornara-se inviável, pois o quartel mantinha a época dois postos militares no percurso, o que frustraria qualquer tentativa de "voar", gíria que significava viajar sem licença. Fracassando na procura obstinada por alguém que fosse "voar", naquele final de semana, decidi "voar" sozinho. Encerrado o expediente peguei a mochila que havia deixado pronta no armário e parti a pé para a estrada. Logo peguei carona com um motorista que me levaria até certa altura da viagem, pois era outro seu destino. Desci na bifurcação da estrada em torno das 22 horas e fiquei aguardando outro veículo. Ás vezes amanhecia sem passar um único carro.

A noite iluminada pela lua desenhava uma paisagem toda prateada, vendo-se ao longe a estrada ensombreada pelas árvores.

Trajando farda militar para facilitar a abordagem, encontrava-me só naquele momento a dez quilômetros de Guia Lopes da Laguna, num entroncamento para Nioaque e Maracaju.

Solitário e absorto em meus pensamentos visualizo ao longe uma figura movendo-se na estrada. Sem poder identifica-la, a aparição surgia e logo sumia do campo visual, perturbando meus pensamentos, deixando-me tenso e intrigado. Em estado de pânico as imagens da estrada se apresentavam distorcidas, criando ilusões de ótica, dando vida às sombras, que se transformavam em monstros. Dominado pelo medo, percebi que vinha em minha direção. O que poderia ser? Deveria aguardar a aproximação ou esconder-me na mata? Não portava nenhuma arma e nem possuía habilidades de lutador para me defender. Região deserta e sem moradias próximas, apenas os soldados se aventuravam a perambular pela estrada à noite. Vendo-o mais próximo, não consigo identificar se é um ser humano, um fantasma ou apenas uma alucinação de minha mente.

A descarga de adrenalina acelera os batimentos cardíacos e deixa-me totalmente inseguro. Qual será o desfecho dessa situação? Serei morto, espancado, esquartejado, abduzido, assaltado ou sofrerei um ataque cardíaco? O medo abre as janelas das crendices em minha mente e percebo que estou numa encruzilhada no dia 13 do mês de Agosto, uma sexta feira de lua cheia e o relógio marcando meia noite. Estático, quase em choque, observo a estranha efígie aparentando trajar uma capa semelhante à de Drácula movendo-se e desaparecendo.

Se estivesse acompanhado num lugar ermo como aquele não sentiria tanto medo. Não deveria ter vindo só. Se fosse algo sobrenatural, não adiantaria esconder-me na mata. O cérebro não raciocina, fixado apenas nas coincidências supersticiosas do momento. Nunca senti tanta falta de meu fuzil.

O espectro aproxima-se mais e mais, sem conseguir delineá-lo. Em última instância recorro à oração, rogando aos céus benevolência. O vulto caminhando lentamente em zigue-zague tal um zumbi, deixa-me sem reação e todo arrepiado. Em pé à beira da estrada fito-o enquanto se aproxima. Cambaleante, detêm-se à minha frente, estende a mão e numa voz gutural e indecifrável diz: boa noite! Quase me borro todo sem conseguir responder a saudação. O silêncio impera por alguns instantes, até repetir: boa noite amigo, oferecendo-me um trago de aguardente que trazia em uma de suas mãos. Trêmulo, ofegante e aliviado aceito uma dose para acalmar a tensão.

A figura assustadora que por pouco não provocara um enfarto resumia-se a um índio embriagado, trajando longa capa de boiadeiro a caminhar pela estrada em direção à aldeia, ora na sombra, ora na parte iluminada pela lua, dando assim, a ilusão de desaparecer.

Genézio de Abreu Martins
Enviado por Genézio de Abreu Martins em 01/03/2016
Código do texto: T5559726
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