CEMITÉRIO E SUAS HISTÓRIAS

Em Janeiro de 1987, então com 29 anos de idade, deixo o serviço público no IBGE em minha cidade, e fixo residência em Foz do Iguaçu, no Paraná. Solteiro e sem emprego formal, preciso trabalhar. Meu pai, que havia firmado contrato de exclusividade nas construções do principal Cemitério Municipal da cidade e que me ensinara a profissão de pedreiro em minha juventude, propõe sociedade no empreendimento, com boa perspectiva de lucro. Convite aceito minha jornada teria inicio no dia seguinte. Executávamos a construção de capelas, túmulos, jazigos, reformas, exumações e sepultamentos de corpos. A Prefeitura não permitia o “enterro” em cova rasa no local. Trabalhávamos todos os dias da semana, sem restrições a domingos e feriados, havendo ocasiões do serviço avançar até o anoitecer, trabalhando à luz de velas, por não existir iluminação entre as sepulturas. Morando num bairro denominado Três Lagoas, distante dez quilômetros, saíamos de manhã e só retornávamos à noite.

Com a proximidade do dia dos Finados contratamos outros profissionais para atender o aumento da demanda. Reginaldo, vigilante noturno do Cemitério, casado e morador numa favela próxima fazia "bico" como pedreiro durante o dia para reforçar seu orçamento. Integramo-lo temporariamente à equipe para cumprir a conclusão dos serviços dentro dos prazos assumidos. Certa ocasião enquanto aplicava revestimento cerâmico a uma sepultura, uma mulher de meia idade, fina, elegante, aparentemente culta e bela, abordou-me solicitando ajuda, narrando delicadamente uma história dramática no intuito de despertar minha comiseração e conquistar minha confiança, disparando à queima-roupa seu pedido inusitado: Precisava do osso de uma criança. De imediato fiquei pasmo com a solicitação. “Macumba da braba”, perguntei-lhe? Não, responde-me, preciso fazer um trabalho espiritual num terreiro de candomblé para resolver um problema particular. Refeito da surpresa, informo-lhe que seria impossível, pois a violação de sepultura é crime e eu jamais cometeria esse tipo de ato ilícito. Ela insiste, oferecendo boa recompensa, implorando que eu analise calmamente seu pedido, voltando posteriormente para saber minha resposta. Reiterei minha decisão, mas continuou tentando me convencer, abrindo sua bolsa e mostrando uma pequena carteira cheia de dinheiro. Reginaldo, ao lado, ouvindo toda a conversa e vendo a senhora sair, chama-a e se dispõe a lhe atender. Pede para procura-lo no dia seguinte, que providenciará o tão almejado osso de criança, mediante o pagamento de certa quantia em dinheiro. Vejo seu semblante triste mudar para certa alegria ao atingir seu intento. Reginaldo declama uma série de recomendações sobre o sigilo da negociação, informando-a de seu envolvimento na incorrência do crime, caso o ato se tornasse público. Ao vê-la sair pelo portão, Reginaldo abre um largo sorriso. Intrigado, questiono-o dizendo que não deveria atendê-la, pois a violação de sepultura poderia lhe custar a perda da liberdade. Serenamente tranquilo, procura me acalmar, afirmando que não cometeria nenhuma violação. Confuso diante da incógnita, pergunto-lhe como conseguiria o tal osso de criança. Com um sorriso no canto dos lábios, diz que entregará à mulher um osso de coxa de galinha. Critico-o pela atitude desonesta, além de quê é fácil identificar um osso de galinha. Desonestidade, diz-me, é o propósito de algumas pessoas que o procura com a mesma solicitação. Corriqueiramente recebe tal pedido. Em casa, quando sua mulher prepara um franguinho na panela, todo osso de coxa de galinha é jogado sobre o telhado de uma varanda. Sob a incidência da chuva e do sol, deteriora-se aparentando certo envelhecimento análogo ao osso da coxa de uma criança recém-nascida, confundindo os incautos.

Restabelecida a rotina do dia, fico só em meu trabalho, refletindo sobre o ocorrido. A mulher praticaria algo ilícito para conseguir algum benefício pessoal? Deveria condenar Reginaldo por agir de má fé com ela?

No dia seguinte, ao vê-la trocar pequeno embrulho por dinheiro, fiquei a pensar na eficácia daquele trabalho espiritual. Se ela atingisse seu objetivo, Reginaldo seria mais esperto que os orixás, por conseguir enganá-los.

Genézio de Abreu Martins
Enviado por Genézio de Abreu Martins em 24/02/2016
Código do texto: T5553355
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.