O Uivar das Máquinas.

Está frio. Ainda é noite. Quatro e cinquenta e uma da manhã. O som dos carros não param. Minha barriga ronca. Tenho que escrever. Tenho que acordar. Tenho que estudar. Tenho que trabalhar. Alguns animais fazem uso de suas vozes e vontades pelas ruas. São estranhos e medonhos. Mais um pesadelo! Sabia que no dia dos gatos alguma ninfomaníaca colocaria a foto não de um felino, mas de um galã, um desses bem cuidados homens de plástico de Hollywood. Sabia. O Mundo está cheio de doidos, dados, estatísticas e neuróticos. Os neurocientistas dizem que os neurotransmissores falham quando a demência se aproxima. Mais animais animados passam entoando seis cânticos sagrados pelas calçadas. Mais uma vez o estômago roncou. O esquema do sistema é não desistir. Não desistir jamais. Há vento e frio lá fora, mas preciso de tudo aquilo que disse acima. Ir ao dentista. Ir a Pasargada, à padaria, ao metrô com seus fantasmas fantasiados de gentes, ir para algum lugar sonhar com um dia de sol debaixo de uma jabuticabeira, com meus pais ainda jovens, eu mesmo ainda jovem, com a esperança natural humana de que ao final tudo dará certo.

Agora já cinco e oito neste quarto vazio de uma quinta feira ainda desconhecida. Como é difícil escrever ao celular em tempos assim. Mas escrever é o que me resta antes do fim do Mundo, antes que o sol volte e dite as regras e diga que os poetas morreram, que os cigarros já eram, mas que ainda há sonhos a perseguir.

Olho pela vidraça, o céu está vermelho, venta forte, as luzes da cidade nunca apagam. Mesmo sem rumo, é preciso traçar um trajeto, mesmo que por aquela viela desconhecida que você viu em seu último pesadelo. A humanidade está tão triste que as mensagens de esperança se multiplicam nos cartazes de visitas das redes antissociais. O desgoverno, o desemprego, a desigualdade. Essas coisas sempre existiram? Que pergunta infantil! Vide a história, meu filho!

As coisas foram piores. Será? Ou será que nunca antes na história da humanidade os humanos não se desumanizaram tanto? As coisas criaram vida própria, profissional, e andam por aí esbarrando nas gentes amolecidas pelo cansaço e a dor da alma.

Ninguém quer saber de sentimentalismos ressentidos, de solitários com lanternas no meio do nada. Os prognósticos, as metas e os programas de aperfeiçoamento exigem máquinas cada vez mais autos sustentáveis, que não durmam, que cumpram o determinado, que cuspam na cara do mendigo porque ele, segundo a meritocracia, é um fracassado e tem que cumprir sua expiação neste globo de homens perfeitos, dinâmicos, empreendedores, vorazes capitalistas do mal. Não faz mais sentido ser bom, diz a matéria da revista de mercado. É preciso ser o melhor, o mais esbelto, capaz e inteligente, com planos concretos para alcançar os êxitos da empresa e ter direito a férias anuais, as quais possam postar suas fotos no Instagram e dizer: vejam! Vejam o quanto somos felizes e vitoriosos, vejam nosso bronzeado, nossa cerveja importada da Bélgica, nossos carros japoneses, nossa frieza britânica, nossa gana americana, nosso poderio aquisitivo! Vejam! Vejam o Quanto estamos sorrindo e o quanto nossos dentes Estão brancos, o quanto estamos explodindo de felicidade. Vejam-nos! E se ninguém vê, ou vê e não comentam, ficam taciturnos, imaginando que devem ser melhores, e postarem fotos mais exóticas, e trocarem o carro, o relógio, o marido, a mulher, o sonho...

Lá fora, como sempre, venta, alguns animais uivam e aqui dentro o escuro de uma barriga a roncar... Talvez seja melhor dormir mais um pouco...

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 18/02/2016
Reeditado em 19/02/2016
Código do texto: T5547293
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.