O CÃO & O PÉ DE GOIABA

 
Eu estava pensando na vida quando adormeci arqueado na calçada suja. Não me importa se a calçada esteja suja. Nunca tive algo asseado na vida. Acordei com aquele cheiro e as pessoas acompanhando. Uns em silêncio, alguns chorando, outros conversando baixinho, formando o murmurinho.
Ouvi o que os homens estavam conversando. Falavam sobre o defunto que estava mal repousado sobre o caixão ganho da prefeitura. Caixão barato como tudo é barato quando se trata de algo público.
Falavam de como ele, o defunto, tinha sido um homem trabalhador. Sempre era visto indo de casa para o serviço e do serviço para casa. Não era homem de ficar no boteco, de gastar dinheiro com algum vício. Era um pedreiro respeitado. Não era o melhor da cidade, mas tinha seu trabalho reconhecido. Alguém lembrou que a casa em que estavam passando em frente, fora construída por ele.
Ouvi também algumas mulheres falando. Eram discursos piedosos e de compaixão sobre a esposa que ficou viúva. “Pobre coitada” era o que mais se ouvia. Teve uma que destoou o assunto dizendo que viúvo é quem morre e que não dava seis meses para ela arranjar outro marido.
Chegamos finalmente ao cemitério. Teve todos aqueles rituais próprios de um velório. A reza, o choreiro dos filhos, da esposa e das mulheres mais sensíveis. Depois desceram o caixão na cova, muitos jogaram terra com a mão e enfim o coveiro completou o serviço. E todos começaram a voltar para casa.
Ah, eu já ia esquecendo sou um velho cão sem dono que só vim a esse sepultamento por ter confundido o cheiro do formol com o cio de uma cadela. Estou ficando mesmo velho, confundindo as coisas e não sei se terei um enterro ao menos assim.
 
***
Pedrinho pulou o muro para pegar goiaba. Esse é um gesto cada vez mais raro nas pequenas cidades do interior de Minas Gerais. Primeiro pelo fato de quase ninguém mais ter um pé de goiaba no quintal.
Aqui em casa mesmo, tivemos que arrancar o pé de goiaba para estender a garagem quando percebemos que havia mais um automóvel a caminho.
Em segundo lugar, quase não há mais quintal, mesmo no interior. Com a economia em tempos de Governo Lula e o banco oferecendo empréstimos, todo mundo fez um puxadinho. Faltou espaço para árvores frutíferas. Então a goiabeira pagou o pato. Lá se foi o vegetal e aquele coração  atravessado por uma flecha que a filha adolescente tinha riscado no caule com o nome do suposto príncipe encantado, e que apenas um por cento das pretensões foram consumadas.
E para terminar, não há mais quase menino de interior que pule muro. Os personagens do vídeo game é que fazem isso para eles. As crianças de hoje apenas manipulam teclados e manetes.
Talvez, em breve, eu conclua essa crônica dizendo que também não há mais interior em Minas Gerais.

DA SÉRIE: CRÔNICAS ANACRÔNICAS
NOTA DO AUTOR: O desafio aqui é criar duas ou mais histórias desconexas envolvendo o cotidiano num total anacronismo.

 
Cláudio Antonio Mendes
Enviado por Cláudio Antonio Mendes em 24/12/2015
Reeditado em 27/12/2015
Código do texto: T5489464
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