A MORTE
Numa tarde fria de inverno enquanto o vento assovia no telhado e balança as árvores no quintal do outro lado da janela, tomo uma caneca de chocolate quente recolhido em meu escritório. Está muito frio lá fora e não há ninguém nas ruas. Sentado diante do monitor começo a revisar um texto produzido anteriormente, corrigindo erros de gramática e concordância, que no momento da escrita deixo de lado para não perder a concatenação das ideias. Disperso em meus pensamentos, distante de tudo e de todos, levo um susto ao ouvir a campainha. Como não gosto de ser incomodado, continuo meu trabalho, corrigindo minhas crônicas. Leio um parágrafo e paro a leitura, buscando reconstruir a frase que não corresponde fielmente meu raciocínio, quando a campainha volta a tocar, tirando minha concentração. Um pouco irritado, não atendo. Como não estou esperando nenhuma visita, talvez seja algum insistente vendedor que se arrisca a trabalhar num dia tão gelado. Retornando a leitura do início por ter perdido o “fio da meada”, fico estático por alguns segundos sem nada na mente. Com o cotovelo na mesa e o dorso da mão apoiando o rosto, fico olhando o cursor, tentando pescar as palavras certas para melhor definir minha ideia, quando ouço novamente a campainha.
Praguejando, penso com meus botões: quem será o atrevido a me importunar dessa maneira num dia tão frio?
Enfurecido, levanto e vou até a porta, abro e tenho uma grande surpresa.
- A morte!... A morte?
Isso mesmo, a morte bateu em minha porta. Atônito, fico sem saber o que dizer.
- Olá, o que deseja? Parece uma pergunta idiota, não é mesmo?
- Vim lhe buscar!
- Como assim, vou morrer?
- Sim, tua hora chegou.
- Perdeu seu tempo, eu não vou!
- Não torne meu trabalho mais difícil. Seja razoável, todos morrerão um dia.
- Não vou, não vou e não vou.
- Não sou um teste de múltipla escolha, não existe plano B e não há possibilidade de sair pela tangente.
- Mesmo assim, repito: não vou!
- Por que motivo não quer morrer?
- Poderia dizer que ainda sou novo, tenho saúde e preciso terminar meu trabalho.
- Então os motivos são outros?
- Gostaria de conhecer o mar, viajar de avião e conquistar a mulher que amo.
- Estou ficando intrigada e impaciente.
- Diria também que não plantei uma árvore, não escrevi meu livro e ainda não fiz meu testamento.
- Tens medo de ir para o inferno?
- Não!
- Então acreditas que vai para o céu?
- Também não. Vou ficar aqui onde estou.
- Esta me deixando furiosa. Diga um motivo ou vou logo à via de fato.
- Não tenho medo de você.
- Como é ousado, vais morrer e não tem medo de mim?
- Não!
- Por que não me temes?
- Chegaste atrasada.
- Atrasada? Sempre fui pontualíssima.
- Já estou morto.
- Deixa de enrolação. Estás vivíssimo em carne e osso.
- Fui morrendo aos poucos.
- Então faça sua defesa. Mas não demore, pois tenho outro compromisso daqui ha dez minutos.
Comecei a morrer lentamente ainda criança quando meus pais podaram meus impulsos e meus ímpetos de viver a vida soberanamente livre e sem restrições, tornando-me obediente, resignado e servil.
No Catecismo mataram o eu indivíduo, implantaram um Cristão imperfeito, incoerente e hipócrita, sendo impossível praticar o evangelho numa sociedade egoísta, indiferente e inescrupulosa.
Na escola, mataram a curiosidade, o questionamento, a dúvida, o deslumbramento e aprisionaram a sabedoria, enfiando em meu cérebro ideias e ideais pré-concebidos.
Na vida adulta, mataram meu tempo, obrigando-me a trabalhar feito escravo, cerceando minha liberdade, tolhendo minhas vontades reprimindo meus desejos, transformando-me tal qual uma máquina dum setor de produção.
A sociedade matou minhas fantasias e meus sonhos, me impôs regras, padronizou-me ao grupo, taxou-me tributariamente, alienou-me a um capitalismo consumista e ironizou minha cidadania, transformando-me num eleitor.
A família anulou minha existência me usurpando a paz, os filhos sugaram a vitalidade de minha juventude e a velhice desencadeou a degenerescência física.
- Estou morto, chegaste atrasada.
- Jamais ouvi uma defesa tão bem articulada. Sinceramente fiquei tocada. Nunca senti pena de ninguém, mas você é de dar dó.
- Detesto a comiseração alheia.
- Posso lhe chamar de amigo?
- Como alguém pode ser amigo da morte?
- Estou cansada de choradeiras e lamentações e você é autêntico e audacioso.
- Então faça como quiser, vamos acabar logo com isso.
- Amigo, fiquei tocada pelo sentimento de piedade. Abrirei uma exceção pela primeira vez. Dar-te-ei mais dez anos de vida.
- Dispenso sua clemência.
- Não quer morrer, e não aceita uma bonificação de mais dez anos?
- Por piedade prefiro a morte.
- Você é muito orgulhoso.
- Foi o que me restou.
- Tudo bem. Aceito sua argumentação. Para compensar sua existência tribulada, concedo-lhe esses dez anos para que possas curtir a vida plenamente.
- Aceito, mas não espere gratidão.
- Não necessito de gratidão. Vencido o prazo venho te buscar.
- Combinado.
- Foi um prazer.
- Infelizmente não posso dizer o mesmo.
- Preciso ir, já está na hora de recolher outro vivente.
- Vá em paz.
- Puxa! Não acredito que consegui ludibriar a morte. Ganhei dez anos de sobrevida...
Pensando bem são mais dez anos de hipertensão, parkinson, diabetes, artrose, insuficiência renal, hérnia de disco, etc.
- Ei morte, volta aqui, leva-me com você...