DDD - Diário de Derrotas [39]

Depois de mais de 2 anos desde o último DDD, eis que.

Sexta-feira.

18h20m

Chego em casa, depois de um dia puxado no trabalho. Chove lá fora. Tenho que jantar, tomar banho e me arrumar para ir à aula. Em 20 minutos. Pedalar mais 4km. Mas a única coisa que eu consigo fazer é me jogar no sofá e ficar existindo. Ponderando os prós e os contras de não ir pra faculdade. No fim das contas eu acabo pegando no sono. Sujo e de barriga vazia.

19h30m

Acordo me coçando. Minhas canelas coçam. Meus pés. Sinto formigamentos e me coço, me coço feito um macaco. Acendo a luz, sempre me coçando, e dou uma boa olhada e o que vejo são pulgas. Minúsculas pulgas. Bom. Mais um problema pra enfrentar. Tomo um banho rápido, vou até o mercado, volto, faço faxina na casa nos mínimos detalhes, lavo e estendo as roupas da semana - uma noite quente de primavera, a lua cheia fulgindo no céu, os cachorros ao meu redor me olhando na labuta; uma hora da manhã e eu pendurando roupas no varal, quando poderia estar, sei lá, trepando por aí. Foi essa a vida que escolhi ter?

Sábado

07h30m

Acordo com a chuva forte marretando o telhado.

Meu primeiro pensamento: as roupas no varal.

Minhas primeiras palavras: filha da puta.

Viro pro lado e tento dormir mais um pouco.

Tento, pois pegar no sono com coceira...

11h30m

- Esse pesticida aqui é bom, mas você tem que ser bastante persistente pra conseguir eliminar as pulgas. Vai precisar de pelo menos uns três desse.

- Quanto custa?

- Vinte reais, cada.

- Ah, sim.

15h30m

É isso aí... Tudo certo, nada que me impeça de, calmamente, me dedicar aos estudos. Pego a lista de exercícios de matemática.

E passo a próxima uma hora e meia nela.

Sem ter conseguido resolver uma só vírgula.

Abro uma cerveja, fecho o caderno, deito no sofá.

Não sei pra onde dirigir a minha frustração barra raiva.

Segunda-feira, feriado de finados.

Acordo com um barulho estranho. Do motor da geladeira dando trancos.

Dá um tranco, para. Dá um tranco, para. Levanto e vou até ela. Abro a porta: o congelador descongelado quase em sua totalidade. Mas a luz está acesa, ela está ligada. Mas não está gelando.

A

Geladeira

Parou

De funcionar.

Depois de eu ter estufado a danada com mantimentos.

Volto àquela lista de matemática. Passo mais um bom tempo nela e o progresso não acontece. Vou resolvendo a parada e de repente alguma coisa não encaixa e volto à estaca zero; analiso a coisa toda, concluo um raciocínio que parece ser promissor e: nada. Cinco folhas para a letra A do exercício 1, que vai até a letra F.

Caçando alguma coisa na geladeira, bato a mão em um danone de saquinho, aberto, que vira. Fecho a porta da geladeira e saio na ponta dos pés, fingindo que não é comigo.

Bom, resolvidos os exercícios de programação, é hora de enviá-los ao professor.

Só que a internet parou de funcionar.

Terça-feira.

07h00m

Acordo, faço minha crepioca, meu suco de laranja com couve e espinafre pra beber quente, tento cagar e não consigo, alimento os gatos e o cachorro e tomo um banho que vai me atrasar e fazer com que os donos da oficina onde trabalho me olhem feio ou me deem comida de rabo. Trabalho polindo carros recém-pintados. Apesar da sujeira, insalubridade, de nego me caçoando por eu não estar comendo ninguém e algumas outras merdas que me entram no ouvido, eu gosto da atividade que paga meu aluguel. E gostar não é morrer de amores; eu largaria esse serviço por qualquer cargo de carimbador de papel que fica na frente de um computador comendo cookies e falando bosta no twitter o dia inteiro. Ah, sim, esse era o cargo que eu tinha lá em São Paulo. Também não morria de amores por ele.

Esse trampo é boiada: você lixa as partes que foram pintadas, elimina falhas da pintura e depois desce o cacete com uma politriz. E é isso. Pra sempre. O bom é que não se usa o cérebro, e ele fica livre pras abstrações, pras contas, pras palavras que nunca vou dizer pra mulher por quem tenho amor platônico e que acho demais pra mim, pros pedidos de desculpas pras pessoas importantes que magoei e ainda não fiz por vergonha da minha existência e etc.

11h30m

Hora de parar a máquina e ir almoçar. Não me sinto bem: minha cabeça dói, sinto fraqueza e a impressão de estar com febre também se faz presente. E chove, e tenho que pedalar 3km até minha casa. E resolvi morar numa cidade que parece ter sido erigida numa cordilheira: simplesmente (quase) não há bairro com ruas planas. E meu local de trabalho fica num lugar chamado "Colina". E eu moro num lugar apelidado de "Morro". E entre a colina e o morro, há o centro. E o centro é a parte baixa da cidade.

Já em casa, continuo sem internet.

Sem geladeira.

Tinha me esquecido que não tinha comida.

Deito um pouco no sofá. Logo começam as coceiras.

Ergo o sofá e despejo veneno no chão e passo o rodo com ódio.

Saio de casa debaixo da chuva e vou até o restaurante onde pego marmitex fiado e peço uma.

Mas o valor do marmitex aumentou. A luz aumentou. O gás. Tudo.

Pra completar, a comida não estava lá essas coisas.

Volto ao trabalho.

Lá fico até 18h00m.

Aí, saio pedalando que nem louco porque tenho que chegar em casa e vide primeiro parágrafo (só que dessa vez com direito a motorista cego enfiando o carro na roda traseira da minha bicicleta).

E hoje tem prova. A semana inteira tem prova.

E eu não me sinto bem.

21h30m

Chego em casa. A prova foi de boas. Abro a geladeira inerte, morta, maldita: fede azedo. Lembro-me do danone. Começo a operação: esvazio a filha da puta inteira. O líquido viscoso escorreu todo pra baixo da gaveta de legumes, e lá azedou. Jogo boa parte dos meus legumes e frutas fora. Sigo na operação até meia-noite, deixando a casa um brinco e não entendendo o porquê da vida.

Quarta-feira.

11h30m

- Viu, não tô me sentindo bem. Vou lá no hospital depois que eu comer.

Dor de cabeça excruciante, febre lazarenta... Em casa, engulo um marmitex insosso e me jogo na cama e apago instantaneamente e acordo me sentindo pior e com preguiça de me locomover pra qualquer lugar que seja, inclusive o hospital. Aí começo a pensar no conserto da geladeira, no conserto da internet, no conserto do celular e no tempo escasso - leia-se inexistente - que tenho pra lidar com as coisas importantes da vida.

Tomo coragem e um banho e vou até o lugar onde consertam eletrodomésticos.

- Fica vinte reais a visita. E pelo que você disse, o conserto vai ficar por mais cento e vinte.

- Ah, sim... E quando você pode ir lá?

- Quatro e meia você estará em casa?

- Sim, sim.

- Então, marcado.

Certo. Cento e vinte reais.

Ontem foi o dia do pagamento e eu recebi duzentos reais.

Pedalo mais um pouco sob a chuva irritante e infinita até a loja onde consertam celulares.

- Ah, moço, eu te liguei ontem e hoje. Não te passaram o recado?

- Não. Ligou onde?

- Na oficina. Disseram que você não podia atender porque estava em horário de trabalho.

- Mas é um caralho mesmo... Digo, desculpa, moça. Mas, e aí, deu certo?

- Então, precisamos de sua autorização porque...

Aí ela descreve que mimimi mimimi vai ficar cinquenta reais mais caro.

- Eu autorizo.

Só não sei como vou pagar.

Volto pra casa e fico esperando o cara da geladeira. Espero até às 18h. Nada.

Aí, enfim, vou até o hospital.

Lá fico uma hora e meia esperando a auxiliar de enfermagem medir temperatura e tirar pressão pra me dizer que a consulta sairia por cento e vinte reais mais despesas com equipamento e medicamento e que, claro, eu tinha opção de ir até a Secretaria de Saúde, onde o atendimento era feito pelo SUS.

- Mas isso aqui não é um hospital público!?

- Não exatamente, moço.

- Meu deus...

O

Dia

Em

Que

Tudo

Custava

Mais de cem reais.

Na Secretaria, depois de meia hora de espera e uns poemas febris levei um bloquinho e caneta -, uma médica simpática e apática me chamou pra sua salinha. Fez as perguntas corriqueiras e me diagnosticou com sinusite, posto que eu não estava com dor de garganta nem me esvaindo em merda.

- Não teve problema com diarreia mesmo?

- Não, doutora. Tudo normal. Na verdade, nem caguei hoje.

- É, pode ser sinusite mesmo. Vou te passar esses remedinhos aqui.

Estranhei a insistência dela nas minhas atividades intestinais. Também não concordei com a resolução da moléstia, mas fiquei calado, porque quem estudou foi ela, não eu.

Em letras garrafais pregada na parede, uma folha A4 dizia:

NÃO EMITIMOS ATESTADOS NEM DECLARAÇÕES.

- E o proletariado doente de verdade que se foda, né?

- Oi?

- Nada não. Boa noite, doutora. Obrigado.

Do lado de fora da salinha, um policial segurava uma metralhadora.

Era bonita a arma.

Com a receita em mãos, cheguei no balcão da farmácia e perguntei:

- Quanto sairia esses dois caras aqui?

- Quarenta reais.

- Quarenta reais.

Ah, vai tomar no cu.

Saio da farmácia e me lembro que tem aula. Aula de matemática. Aula onde o professor faz sua mágica ao explicar e resolver as questões das listas que antecedem provas e faz você - que se sentiu um burro por não ter sabido resolver - se sentir um retardado. Mas, não dá pra pedalar até essa explicação dele. Saio da farmácia e embico pra dentro da academia onde passei noites lindas de alegria treinando muay thai e fico assistindo ao treino e morrendo de inveja da minha saúde e disposição daqueles dias.

Fim do treino e:

- Amiga!

- Sua vagabunda!

Ganho um abraço.

Não conseguia me lembrar do último tão sincero que havia ganho ou dado.

A única coisa pela qual valeu a pena respirar hoje.

Aí, volto pra minha casa, pra minhas pulgas e pro meu cachorro sujo e ensopado que só quer saber de ficar do lado de fora tomando chuva.

Quinta-feira

07h00,

Bom, aquilo que a médica tanto desejou aconteceu: amanheci o dia me cagando.

Sem chance de ir trabalhar.

Dei umas três cagadas, me troquei e pedalei até a farmácia da Prefeitura.

Enfrentei uma fila só com velhos, peguei meus remédios e pedalei tranquilo e calmo até em casa, pensando em como era bom morar num lugar bom, com os melhores mercados e etc. ao redor. Bom e caro. Deixei pra me deprimir com valores depois.

Passei o dia dormindo. Tentando acordar.

O cara da geladeira veio, mas dispensei, dizendo que compensaria comprar outra.

Não sei com qual dinheiro.

Meu celular ainda não ficou pronto, pois nenhum software parece ser compatível.

Minha internet voltou, mas o computador não quer mais ligar.

As pulgas foram para o quarto.

Os remédios que me receitaram estão dando mais dor e febre.

Hoje tem prova de programação e eu não sei como lidar com a vida.

Quero terminar esse texto aqui.

Sexta-feira

21h10m

As roupas que lavei semana passada continuam no varal.

Dor de barriga continua.

Não fui fazer a prova de matemática.

Continuo sem geladeira.

Continuo sonhando com um camp de muay thai de 6 meses na Tailândia.

A caixa d'água começou a transbordar do nada em cima do meu banheiro.

Ontem eu abri o computador e fiz ele voltar a funcionar.

Mas agora não sai som do danado. Não posso ouvir música.

Nosso sistema solar viaja a velocidades indescritíveis pela galáxia.

Ficar parado parece seguro.

06/11/2015

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 06/11/2015
Reeditado em 06/11/2015
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