Quem se importa?

O cão latia com ímpeto e a rua escura e adormecida deixava escapar aos poucos seu silêncio por entre os dedos da madrugada. Duas horas da manhã de sexta-feira e os latidos ensurdecedores aconteciam com intervalos de cada vez menores. Quase ninguém se atreveu a verificar se algo anormal acontecia, já que o barulho era feito por um cão de rua e qualquer banalidade poderia tê-lo incomodado, até mesmo a presença de outro cão.

Essa situação tirou da zona segura e confortável de sua casa serena e segura, apenas Tarcísio, o único que, em um ato atrevido e temerário, foi até o portão de casa observar se havia algo errado. Seu coração batia apressado e sua respiração era lenta e irregular. Na rua não havia viva alma.

Já estava prestes a voltar à segurança do lar quando ouviu nitidamente que alguém corria. Este era o motivo da inquietação do cachorro que ainda latia sem trégua. Tarcísio encostou o portão com medo, enquanto procurava, pela brecha, saber o que estava acontecendo. Após resguardar-se por poucos minutos, ele abriu devagar o portão que dava para a rua, porém a única coisa que conseguiu ver foi um vulto virando a esquina antes que pudesse ser identificado.

Entrou rapidamente, trancou a porta principal da casa e após tomar de um gole único um copo de água gelada, preparou-se para dormir. Naquela madrugada ele demorou a adormecer. Revirou-se na cama sem contar por quanto tempo, ainda com a tentativa da lembrança do vulto que virava a esquina em segundos, sem olhar para trás. Quem seria? Seria alguém de fato, ou apenas um animal grande que assustou o cão solitário? Seu rosto suava, molhando levemente a barba rala e bem feita. Os cabelos negros e o travesseiro igualmente umedeceram antes que o sono chegasse.

Quando acordou, ainda cedo, após um rápido banho preparou-se para ir à padaria. Morava sozinho e pretendia sair logo após o café para aproveitar o sábado com alguns amigos. Ao passar o portão, deparou-se com muita gente aglomerada a alguns metros de sua casa e seguiu um tanto assustado e curioso para saber o que havia ocorrido, inclusive desde a madrugada.

Assim, ao se aproximar do primeiro vizinho com a intenção de inteirar-se do ocorrido, ele percebe, antes que pudesse fazer qualquer pergunta, o corpo estendido no chão. Um homem de meia idade, pálido e mal vestido. Parou por alguns minutos diante da cena angustiante, como que montando as peças de um quebra-cabeça.

Descobriu após pouco tempo que, aquele morador de rua, havia sido assassinado por outro, após uma briga por poucos centavos. Não havia família e sequer qualquer parente que pudesse ser avisado do ocorrido. A ambulância havia sido chamada desde a madrugada, quando a primeira pessoa, ao sair cedo de casa, deparou-se com o corpo. Ao lado dele, somente o cão. Aguardando e latindo, como quem quisesse despertá-lo.