UMA CARTA DE ITAPIRA, SP.

A CARTA QUE VEIO DE ITAPIRA, SP.

Nelson Marzullo Tangerini

Dinah Marzullo estava grávida. Nestor Tangerini havia tirado férias para acompanhar o nascimento de seu primeiro filho, Nirton.

Estava em casa, em Olaria, subúrbio do Rio, tirando algumas dúvidas de língua de portuguesa de seu cunhado, Maurício Marzullo, que se preparava para um concurso público.

O telefone da vizinha toca. Um funcionário do DCT [departamento de Correios e Telégrafos], hoje ECT [Empresa de Correios e Telégrafos] queria falar com Tangerini. Ele queria faltar naquele dia e pediu que Tangerini fosse trabalhar no lugar dele. Em outra ocasião, se Tangerini viesse a faltar, ele trabalharia em seu lugar.

Tangerini, ao telefone, argumentou que havia tirado férias para acompanhar o nascimento do filho. Mas o amigo insistiu. E Tangerini cedeu. Era apenas um dia.

Diante da argumentação do amigo, Tangerini cancelou a aula com Maurício, arrumou-se e foi trabalhar. Saiu de sua casa, à Rua Leopoldina Rego, 44, e caminhou para a rua principal com o objetivo de pegar um ônibus da Viação Estrela do Norte, que vinha da Penha e ia para o centro da cidade.

No meio do caminho, no Largo de Benfica, o ônibus em que vinha colide com outro. Tangerini fica no meio das ferragens. Fica gravemente ferido. E, no hospital, perde o braço esquerdo.

Jornais da época noticiaram o doloroso acidente, como o jornal carioca O Botafogo, em sua página 3, no dia 2/3/1940:

“Nestor Tangerini, consagrado escritor e filólogo brasileiro, encontrando-se recolhido a um leito do Hospital de Pronto Socorro, em virtude do desastre de ônibus ocorrido a 20 de janeiro último, do que lhe adveio a perda do braço esquerdo, impossibilitado de ver seu filhinho Nirtinho, nascido no dia 11 de fevereiro p.p., escreveu, no próprio leito de dor, este lindo soneto, que dirigiu à sua esposa.”

Eis o soneto escrito na Enfermaria Álvaro Ramos, Pronto Socorro, no dia 14/2/1940, depois do acidente em que perdera o braço esquerdo:

À DINAH

Nasceu Nirtinho, o príncipe encantado,

O filhinho de nossa adoração,

O herdeiro de um paupérrimo reinado

Que tu enriqueceste de ilusão.

Ante meu braço esquerdo decepado,

Com que te apertei muito ao coração,

Todo o teu sonho viste derrocado...

Mas Nirtinho lhe deu ressurreição!

Dizem que, de tão lindo, não tem par,

E, louco por falar, faz grande alarme.

E eu como anseio de o sentir falar!...

Não para ouvir papai, que é tão comum,

Mas, vivinho e curioso, perguntar-me

Por que ele tem dois braços, e eu só um....

Autor: Nestor Tangerini

Em 1995, mantinha correspondência com a poetisa e compositora Yara Horta. Dentro de uma carta destinada a referida escritora, enviei-lha este doloroso soneto escrito por meu pai à Dinah e a Nirton, meu irmão mais velho.

Emocionada com o que Nestor Tangerini escrevera, Yara me reponde com suas belas palavras de poetisa sensível:

“Itapira, SP, 19.2.1995

[...]

Nelson,

Recebi o poema de seu pai, em homenagem à sua mãe. Lindo! Emocionante! Até chorei. Imagino como eles devem ter sofrido nessa época.

Seu pai deve ter sido um homem muito corajoso, muito forte. Achei admirável a capacidade dele de esquecer a própria dor de perder o braço, para consolar sua mãe, que devia estar fragilizada como o acidente e com o parto. Que lindo!”

Este fragmento de sua foi publicado na primeira edição do livro de sonetos Dona Felicidade, Editora Achiamé, Rio de Janeiro, RJ, em 1996, deverá constar na 2ª. Edição do livro de Nestor Tangerini.

Lamentavelmente, perdi o contato com a referida escritora e todas as suas cartas foram todas perdidas.

Um outro jornal do Rio, no dia 22.1.1940, relataria o acidente, mas de maneira equivocada, porque Tangerini não estava com o braço esquerdo fora do ônibus. Lamentamos não ter o nome do jornal, pois a pessoa que nos passou o recorte não teve a curiosidade de anotar o nome do periódico.

“ TEVE O BRAÇO ARRANCADO PELO ÔNIBUS DOLOROSO ACIDENTE COM CONHECIDO AUTOR TEATRAL

Horrível acidente ocorreu na noite de sábado último no largo de Benfica esquina da rua Licínio Cardoso, dele resultando sair gravemente ferido conhecido escritor teatral.

TEVE O BRAÇO ARRANCADO

O escritor, de regresso à sua residência, viajava num ônibus da Viação Estrela do Norte, tendo o braço esquerdo fora da janela do carro. Ao chegar àquele local, um outro ônibus, da mesma empresa, que trafegava em sentido contrário, passou de raspão pelo carro em que viajava o escritor e arrancou o braço do inditoso passageiro.

Uma ambulância do Posto de Assistência do Méier compareceu ao local e transportou o ferido diretamente para o Hospital de Pronto Socorro, onde ficou ele internado em estado grave.

A VÍTIMA

A vítima do doloroso golpe foi o sr. Nestor Tangerini, brasileiro, branco, casado, com 44 anos de idade, funcionário do Departamento Regional dos Correios e Telégrafos e residente à rua Leopoldina Rego, nº 44.

O Sr. Nestor Tangerini é um escritor deveras festejado nos nossos círculos teatrais, sendo autor de numerosas peças de grande sucesso.

A notícia do triste acontecimento causou o mais profundo pesar em toda a cidade”.

Em fevereiro daquele ano, dias após o nascimento do filho, Nestor Tangerini recebia alta e o ator Manoel Pêra foi buscá-lo de carro no hospital, acompanhado das atrizes Dinorah Marzullo Pêra [esposa de Pêra], Antônia Marzullo [sogra de Pêra e Tangerini] e do poeta Maurício Marzullo [filho de Antônia e cunhado de Pêra e Tangerini]. Maurício me contava que, ao chegarem, encontraram Nestor Tangerini sentado na cama do hospital declamando o soneto À Dinah para médicos e enfermeiros. E que todos se comoveram com seus versos e choraram.

Este acidente ainda repercute em nossa família [Tangerini-Marzullo-Pêra], que, constantemente, recorda, com carinho, os bons momentos vividos ao lado do artista.

Nelson Marzullo Tangerini, 60 anos, é escritor, jornalista, fotógrafo, compositor e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br] , onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini, da ALB, Academia de Letras do Brasil, da UBE, União Brasileira de Escritores, e da ABI, Associação Brasileira de Imprensa.

nmtangerini@yahoo.com.br

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 16/10/2015
Reeditado em 21/08/2016
Código do texto: T5416564
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