Apenas um susto, mas que susto!
 
Muito pequenina ainda, um dia me abraçou e me beijou. Segurou meu rosto entre as mãozinhas delicadas, olhou-me fixamente nos olhos e disse pai, aconteça o que acontecer, e mesmo que a gente tenha que se separar, nunca se esqueça de que eu sempre vou te amar. E repetiu com veemência: nunca se esqueça!
 
Não entendi o que teria motivado tal gesto, sendo ela tão novinha e sem nenhuma noção do que poderia ser quem sabe uma despedida ou infortúnio. Não me surpreendia mais a sua linguagem correta, pois embora tenha demorado um pouco para começar a falar, desde o princípio pronunciava as palavras direitinho, quase sem erros. Todo mundo se admirava com suas tiradas em português impecável e inteligentes. Contudo, não pude deixar de me emocionar.
 
Foi num exame de rotina, cerca de dois anos mais tarde, que veio o alarme. Neutropenia.

Entrei em desespero e mil vezes repeti: como pode, meu Deus? Uma menininha alegre, ativa, serelepe. Como pode? Por que a terrível e impiedosa enfermidade escolheu minha filhinha?
 
Com o laudo do laboratório em mãos eu não conseguia acreditar no que lia. Imaginar as consequências devastadoras da doença então me desmontava. Quase me levava a nocaute.
 
No parquinho, à vontade, brincando e se divertindo pra lá e pra cá. Eu sentado num banco de madeira, pensativo em plena terça-feira de carnaval. Ela, aparentemente saudável, sem nada. Haveria mesmo uma coisa ruim escondida dentro dela?
 
Pediatra recomendou especialista. Levamos o mais depressa possível. Ela quase destruiu o consultório. Jamais foi de parar quieta. Falava e andava o tempo todo, mexendo aqui e ali. Sempre desse jeito. Acreditar que estivesse doente?
 
Novos exames. Valente, comportava-se com bravura em cada coleta no laboratório do Pequeno Príncipe. Supérfluas as mesuras do enfermeiro, habituado a lidar com crianças compreensivelmente medrosas na hora da agulhada. Com a Mariana não precisava de enrolação nem de meias-palavras ou meias-verdades. Todavia, por precaução talvez, ela preferia manter a mãozinha livre entre as minhas. Sem parar de tagarelar, claro.
 
No início, rotina mensal. Íamos cedo ao laboratório e na volta parávamos na Igreja das Mercês para rezar, agradecer e tomar a bênção do capuchinho de plantão. Bom para fortificar o espírito, demais necessitado no período de apreensão e aflição pelo qual estávamos passando. A Dra. Flora Watanabe fazia questão de examinar ela mesma as plaquetas sanguíneas, e no final da tarde me telefonava para comentar o resultado. Boazinha e dedicada a Dra. Flora! Dessas pessoas, felizmente não raras, que fazem da profissão verdadeiro sacerdócio.
 
À medida que o risco de recrudescimento da patologia se afastava, em função da melhora e estabilização do nível de neutrófilos, os intervalos entre os exames foram aumentando. Finalmente, a alta.
 
A ameaçadora neutropenia deve ter-se apiedado de mim e decidiu não mais se manifestar. Abandonou seu propósito maléfico e destruidor, e nos deixou em paz. E que seja assim.


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N. do A. – Na ilustração, Mariana Rafaela, filha do autor,  aos seis anos, pronta para o baile de carnaval do ano 2000.
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 03/10/2015
Reeditado em 03/06/2021
Código do texto: T5402882
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