RIO PARANÁ (ESTÓRIAS DE BEIRA DE RIO).

RIO PARANÁ (ESTÓRIAS DE BEIRA DE RIO).

Quando menino morava na ali beira do rio, do Rio Paraná. Numa pequena casa de sapê, de chão batido, toda rodeada de varandas em treliças, janelas com cortinas brancas feitas de sacos de algodão, que minha mãe aproveitava, das compras de mantimentos. Ao lado esquerdo uma imensa figueira centenária que fazia sombra no quintal e muitos pássaros faziam dali sua morada. Casa de ribeirinho, de pescador. Fogão a lenha feito de barro, café com mandioca e açúcar, broa de milho, assada no forno de barro, viola caipira pendurada atrás da porta, pra fazer cantorias na boca da noite, depois da lida do dia a dia. Simples e arejada pelo vento que vinha correndo solto desde a boca das lagoas contornando a curva do rio, trazendo aquele cheiro de flores da ribeira, das encostas, dos barrancos, aquele perfume pirangueiro de beirada de rio. A brisa leve do verão produzia aquele som característico das águas batendo nos barrancos. Barulho de beira de rio, só quem viveu conhece essa melodia. Naquele tempo nem imaginava o que poderia acontecer no futuro do rio, que era belo e majestoso, com suas águas claras esverdeadas. O rio obedecia a um ciclo natural de período das cheias e período da seca. Naquela época o comércio fluvial era intenso. Porto Epitácio era considerado o segundo porto fluvial do Brasil. Havia varias companhias de navegação que transportava madeiras, boiadas, soja, milho e muitas outras mercadorias. Com toda essa movimentação econômica, gerando mão de obra, trabalho e renda, era intensa a quantidade de gente que por aqui transitava. Negociantes, aventureiros, boiadeiros, marinheiros e como não poderia deixar de ser, havia muito turista, gente chique da capital, de varias partes do Brasil e até do estrangeiro. Lembro-me quando aos domingos, no antigo caís do porto, a molecada ficava pulando do alto dos parapeitos do caís, nas águas do rio que nesse trecho era profundo, pois os navios rebocadores, as chatas atracavam justamente nesse lugar para carregar e descarregar as mercadorias. Nestas exibições de saltos, era preciso muita habilidade para saltar entre os barcos e toda a molecada saltava para se mostrar aos turistas, que aplaudiam tamanha coragem. Houve um domingo em que Vadinho, garoto esperto e destemido, que sempre nadou , mergulhou e saltou entre os barcos, com extrema competência, deu seu último salto. Subiu lá no alto do guindaste e o povo gritava: salta... Salta... E ele saltou, mergulhou por entre as chatas e rebocadores, nunca mais retornou, todos gritaram, chamaram e choraram, encontraram-no três dias depois rio abaixo.

A pesca era a atividade econômica básica de muitas famílias de ribeirinhos, que praticamente viviam da agricultura familiar. Uma roça de mandioca, outra de milho, no fundo da casa uma horta. Criavam-se umas galinhas, uns porcos e desse jeito vivia-se e tocava-se a vida. Muitos moravam nas ilhas naquela época. Ilha do Quero-Quero lembro-me dessa, pois sempre ia pescar com meu pai por aquelas bandas. Essa gente chamada de pirangueiros ou ribeirinhos era praticamente todos pescadores, que tinham uma relação muito profunda com o rio, conheciam o seu ciclo, a sua natureza e mantinham um profundo respeito e veneravam a sua alma, quase que como uma entidade, pois sabiam da sua força. Quando algum pescador tentava desafiá-lo, pagava caro com sua própria vida. Dizia-se “hoje o rio não ta bom pra peixe”- Tião não vai pro rio não, hoje o rio ta bravo, ta perigoso, não vai não Tião! Teimoso Tião não ouviu o conselho do velho pescador, que desde muito menino já ouvia os mais velhos falar da fúria do Paranazão. Nunca mais voltou, foi engolido pelo rio. Dizem os mais antigos, que nas noites de lua cheia, uma moça muito bonita surge nas beiradas do rio e canta uma canção mágica, enfeitiçando os pescadores e levando-os para as profundezas do rio. Diz o povo que Zé Botero, pescador e violeiro, foi levado pela mãe d’água, (ser encantado que enfeitiçava os pescadores). Numa dessas festas de Nossa Senhora dos Navegantes, ela apareceu no baile,tomaram pinga, riram e dançaram a noite inteira, nunca mais se viu o Zé. Dizem que nas noites de lua, um canoeiro rio abaixo, passa e da até pra escutar, o som de uma viola que chega até arrepiar. ”Um encantado o Zé virou”. Devotos de Nossa Senhora dos Navegantes, no dia quinze de agosto comemoram até hoje, o dia da festa da padroeira, uma antiga tradição, que mistura crença, fé e festa popular. Do outro lado do rio, na margem mato-grossense, tem uma capelinha, onde fica a imagem da santa, esse lugar chamado de Porto XV, antiga vila de pescadores, que servia de pouso a boiadeiros, que vinham transportando boiadas desde o pantanal do Mato Grosso para São Paulo, fazia ali a sua parada. Nessa época não havia pontes nem estradas de asfalto como hoje, só um picadão, que podíamos chamar de “Estrada boiadeira” e a travessia do gado era feita através de balsas, do Porto XV para o Porto Tibiriçá no lado paulista. No dia de Nossa Senhora dos Navegantes, uma procissão de barcos todos enfeitados com fitas e bandeiras coloridas, saia do Porto XV, em direção a igreja matriz, em Porto Epitácio SP. Chegava até o caís do porto ao lado do famoso restaurante do Damasceno e subia aquela ladeira de terra até a matriz, onde o padre rezava uma missa, depois o trajeto era feito de volta, com muitos fogos, e cantorias das beatas, nos barcos e canoas, que iam sumindo descendo rio abaixo, era um espetáculo bonito de se ver, nunca mais me esqueci desse momento de fé e religiosidade. De volta ao Porto XV, na capelinha era rezada mais uma missa e assim encerrava-se a parte religiosa e começava-se a festança profana, com muita comida, jogos de malha, corrida de cavalos e a noite o baile, com sanfona e viola. Os músicos, geralmente eram paraguaios, tocavam-se aquelas polcas mato-grossenses, aqueles chamamés, as guarânias e os rasqueados. O arrasta- pé e a folia estendiam-se noite adentro até o raiar do dia. Muitas moças bonitas pra dançar, aquelas caboclinhas mimosas com seus vestidinhos de chita, todas emperiquitadas com rouge, batom e muito pó de arroz, perfumadas e cheirosas que nem uma flor da ribeira. Como porto XV havia se tornado um lugar de pousada de boiadeiros, instalou-se no povoado, um puteiro, uma zona de meretrizes, a dona era uma paraguaia velha, que contratava meninas pobres, perdidas na vida e dava cama, comida e roupa lavada em troca delas trabalharem no puteiro. Nestas festas da padroeira sempre tinha um peão valente, que bebia umas e outras a mais e dava uns tiros e arrumava confusão, queria dançar com uma dessas putas que estava acompanhada de um marinheiro, ai a confusão começava era cadeiras e garrafas pra todo lado e assim corria a notícia fulano de tal foi baleado lá no Porto XV e morreu. Isso era comum, nesses bailes, ali de beira de rio, onde a sanfona ficava louca rasgando o fole em escalas melódicas animadas e a viola repicava a noite inteira sem parar. Quem tocou muita viola, nesses puteiros, foi a grande violeira Helena Meireles, que animou muitas dessas festas. Ela conta em seu documentário, veiculado pela TV Cultura, que numa dessas noites de cantoria, num desses puteiros, chegou um desses boiadeiros valente e disse toca uma moda bonita ai moça, se não o coro vai comer. O boiadeiro foi só tomando pinga à noite inteira, de repente sacou um trinta e oito da cinta e deu um tiro que espatifou a viola. Saíram todos correndo e acabou a cantoria, o boiadeiro pegou a moça mais bonita e foi pro quarto. No outro dia de manhã levantou, pagou toda despesa e os prejuízos, pediu desculpa por tudo, arriou seu cavalo, montou e começou a tocar o seu berrante, chamando a boiada, e a poeira foi levantando e o som do berrante foi sumindo no estradão. A mocinha na janela acenava um lenço branco, com os olhos cheios de lágrimas.

Roman Kane